A arte anticolonial de Aimé Césaire em Uma temporada no congo ou Um teatro a contrapelo
- crítica teatral

A arte anticolonial de Aimé Césaire em Uma temporada no congo ou Um teatro a contrapelo

artigo por HERIBALDO MAIA – Ao tratar da luta popular por independência na República Democrática do Congo, que por oitenta anos foi colonizada pela Bélgica, Aimé Césaire traçou uma profunda conexão entre capitalismo, fascismo e colonização em "Uma temporada no Congo". Nessa chave crítica, o historiador e mestrando em Filosofia Heribaldo Maia analisa a peça de Césaire, em meio a considerações sobre a luta por emancipação e os enclaves que habitantes de territórios colonizados enfrentam ao longo da história, trazendo à tona as marcas coletivas que ressoam mundo afora, a partir do contexto africano – confira!

Há uma famosa frase de Max Horkheimer (1895-1973) que diz: “Quem não está preparado para falar sobre capitalismo, deve permanecer em silêncio sobre o fascismo”. Podemos concordar com o filósofo alemão. Porém, a peça de Aimé Césaire (1913-2008), Uma temporada no Congo, nos impõe um novo imperativo, ou talvez complemente-o: quem não está pronto para falar de colonialismo, deve permanecer em silêncio sobre capitalismo e fascismo.

O projeto moderno, que foi o espírito da expansão europeia pelo mundo, é permeado, desde as suas raízes, por uma lógica racista que, por sua vez, alavancou o capitalismo, justificou o colonialismo e inspirou o fascismo. De tal modo que o fascismo é filho primogênito do colonialismo. Desde os campos de concentração, o trabalho forçado, a inferiorização de povos e a espoliação de nações, cujo ideário permeou o Terceiro Reich alemão, não nos é estranho o que vimos no colonialismo clássico e em sua versão no século XX com a partilha de África pelo imperialismo europeu. O resultado é que a história da modernidade ocidental, por trás das aparentes glórias, monumentos e feitos, como diz Walter Benjamin (1892-1940), esconde que “todo monumento de cultura é também um monumento de barbárie”. Barbárie essa que sequestrou, escravizou, saqueou, explorou e levou à destruição continentes inteiros.

Césaire nos ofereceu em sua peça algo que transcende o campo artístico. Contudo, sem renunciar ao brilhantismo estético, o autor nos entregou uma contra-história da modernidade ocidental, ao mergulhar no coração de uma das mais brutais experiências humanas promovidas pelo colonialismo europeu: os acontecimentos passados no Congo Belga. Por meio de seu brilhantismo artístico, Césaire impõe a todos e todas um acerto de contas a contrapelo, mas, acima de tudo, faz um alerta de que nem “os mortos estarão em segurança se o inimigo vencer. E esse inimigo não tem cessado de vencer”, como dizia Benjamin.

A peça se concentra nos fatos entre a independência do Congo, até então uma colônia belga, e a morte do líder político e revolucionário Patrice Lumumba (1925-1961). Antes de continuar, um breve parêntese, a título de entender o tamanho da crueldade colonial praticada no Congo: tecnicamente, o Congo é uma propriedade particular do Rei dos belgas, Leopoldo II, que, em seu testamento, entregou-a ao “povo belga” como presente. O mórbido e sangrento presente era uma bárbara colônia onde os colonizadores cometeram um dos maiores genocídios da história humana e da qual, como a peça mostra, através da personagem do Rei dos belgas, os belgas se viam não como conquistadores, mas como fundadores, “que aqui chegaram não para tomar ou dominar, mas para doar e civilizar”.

Porém Césaire, através de seu trágico herói, Patrice Lumumba, oferece a nós leitores e expectadores o que é, de fato, “civilizar” e qual preço os congoleses pagaram (e pagam até hoje) pela “generosidade” belga. Como disse a personagem de Lumumba na peça:

Nós somos os que tiveram as posses tomadas, os que foram espancados, os que foram mutilados; os que eles menosprezavam, os que eles cuspiam na cara. [...] para quem duvidasse que o ser humano pudesse não ser humano, bastava olhar para nós. [...] todo sofrimento que se podia sofrer, nós sofremos. De toda humilhação que se podia beber, nós bebemos!. (Uma temporada no Congo, Temporal, 2022, p. 59, grifos meus)

É pela personagem de Lumumba que Césaire conduz a trágica epopeia congolesa – quando a trajetória de um homem, de uma nação e, digo mais, da emancipação do mundo do julgo do colonialismo, se encontram. Lumumba, que foi um brilhante e habilidoso político, militante e intelectual congolês, lutou bravamente, sem renunciar, como mostra a peça, a suas convicções. Afinal, renunciar, abrir mão e conciliar com quem preferia um governo pós-independência que não colocasse pela raiz o que representou o colonialismo belga e seu estrago, significaria que a independência nesses moldes nada mais seria do que uma dependência sob novos parâmetros. Ou seja, silenciar e ser cúmplice da morte, da miséria e da destruição promovidas pelo colonialismo. Lumumba não aceitou. E apesar do silêncio da história oficial, é através de uma peça politizada que Césaire nos entrega a versão dos acontecimentos pelo povo congolês, mas sem cair numa espécie de arte panfletária, e por meio de um enredo onde cada personagem dialoga com os fatos, só que de modo sutil, delicado, impactante e que nos obriga a nos posicionar. A peça é um chamado a que temos a obrigação de responder.

Por tudo isso que o texto de Césaire não se resume a esses acontecimentos como se fosse apenas uma reprodução documental da história; pelo contrário, ele os transcende, nos levando a um deleite pelo qual, enquanto lemos, sentimos pontadas em nossos corações, apertados e revoltados, por sabermos que, ao final, a barbárie vencerá mais uma vez. A hipocrisia que a peça mostra ao final, com o envolvimento, direto ou indireto, de traidores e conciliadores submissos na morte de Lumumba, com a dominação colonial, os banqueiros (representando o grande capital), o cinismo belga e até a ONU, que, com sua absurda “neutralidade diplomática”, iguala a violência do oprimido à do opressor. Sim, o discurso de Lumumba no dia da proclamação da independência era violento, mas uma violência necessária para quebrar as correntes, correntes essas que a Bélgica, com seu discurso aparentemente de “paz e amor”, não queria ver quebrada.

Assim, a peça de Aimé Césaire, que chega ao Brasil pela editora Temporal, em boa hora, já se torna leitura obrigatória para todos e todas que desejam conhecer o que foi a jornada da República Democrática do Congo e de seu líder anticolonial Patrice Lumumba; afinal, o autor mantém impressionante fidelidade histórica aos fatos. Mas a experiência da leitura, que nos desperta percepções, emoções e afetos, nos obrigando a nos posicionar no mundo, a tomar lado e mudar de perspectiva, é um deleite típico de um precioso trabalho artístico, pelo qual Césaire transita, através de suas personagens, da tragédia de inspiração grega, até um profundo trabalho de pesquisa. Desde personagens que nos brindam com falas impactantes até a sutileza de uma leitura que parece trazer um som de fundo, que nos dá a mão e nos leva junto, passo a passo, ato após ato, pelas entranhas da barbárie colonial. Portanto, que nos entreguemos diante do chamado de Césaire, desse algo de transcendente que nos convida a tomar lado, e mergulhemos em Uma temporada no Congo, mas não como meros expectadores ou leitores, mas como agentes e lutadores, hoje, para a destruição do colonialismo em todas suas facetas. Talvez essa seja o desejo de Césaire, e espero que estejamos à altura de sua grandeza e da memória de Patrice Lumumba.

*

Heribaldo Maia é historiador, mestrando em Filosofia pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), professor dos cursos Desvendando a dialética: uma introdução ao pensamento de Hegel e Por que não há revolta? Neoliberalismo como contrarrevolução – ambos pela plataforma Classe Esquerda – e autor do livro Neoliberalismo e sofrimento psíquico: o mal-estar nas universidades (Recife: Ruptura, 2022).