A Temporal Editora, em parceria com o Instituto de Pesquisas e Estudos Afro-Brasileiros (Ipeafro), anuncia a esperada reedição da antologia Dramas para negros e prólogo para brancos. Esta coletânea, composta por nove peças escritas especialmente para o Teatro Experimental do Negro (TEN), tem organização de Abdias Nascimento, um dos fundadores e principal articulador do grupo.
A nova edição inclui as nove peças e prólogo, presentes na edição original, de 1961, além de textos inéditos que evidenciam a trajetória e a relevância do TEN, tanto no contexto da dramaturgia quanto na luta contra o racismo. Entre as peças reunidas estão títulos como O filho pródigo, de Lúcio Cardoso, Sortilégio, mistério negro, de Abdias Nascimento – em sua primeira versão –, Anjo negro, de Nelson Rodrigues, entre outros.
O volume conta ainda com apresentação de Elisa Larkin Nascimento, diretora do Ipeafro; prefácio da pesquisadora e dramaturga Leda Maria Martins; e um ensaio da coreógrafa e multiartista Carmen Luz; além de escritos do próprio Abdias e textos biográficos sobre os autores, produzidos pelo historiador Christian Moura. Fotos históricas das primeiras montagens das peças, de autoria de José Medeiros e Carlos Moskovics, também foram incluídas à edição.
Na foto: Helba Nogueira, Heloisa Hertã, Matilde Gomes, Léa Garcia e Abdias Nascimento
Resumo das peças, por Leda Maria Martins
O filho pródigo, de Lúcio Cardoso, abre a antologia. De tônus intimista e dicção mais literária do que teatral, a peça pode ser lida como uma alegoria poética, por meio da qual o drama do estigma da cor e da raça pulsa todos os embates e dilemas de uma família negra de referências arquetípicas bíblicas, em uma atmosfera sombria, composta por uma trama que se localiza em um espaço-temporal mítico e místico, quase como uma fábula ou parábola metafísica. [...]
Já em O castigo de Oxalá, de Romeu Crusoé, o protagonista Raimundo, um jovem negro, tenta resolver suas questões identitárias e de afirmação como negro, voltando-se contra a religião do candomblé e se tornando, com determinação e resiliência, um próspero comerciante. [...] Envolvido pela trama da antiga namorada negra, Rita, e de Ernesto, antigo cafetão de sua mulher branca, Raimundo é vítima das diabólicas ações de seus desafetos, perde seus bens, incendiados por seus inimigos, e, tal qual Otelo, consumido por suspeitas infundadas e ciúmes, assassina a esposa que diz amar. [...]
Em Auto da noiva, de Rosário Fusco, a comicidade da trama ligeira, como farsa, torna risível e ridiculariza os ideais de embranquecimento, tornando-o um mote caricato, continuamente desacreditado pelas falas, versos e cantos irônicos do coro e da Filha, risíveis, que, pela repetição farsesca, o ridicularizam, deslegitimam e desconstroem como máxima. O ritmo frenético das ações, a tessitura simplificada da linguagem, as falas e situações paródicas, os personagens-tipo, quase circenses, sem nome e sem profundidade psicológica, produzem uma comicidade de picadeiro, de humor satírico. [...]
Em Sortilégio, mistério negro, Abdias Nascimento recria o trio amoroso exemplar: o homem negro que despreza a mulher negra, elegendo como esposa a mulher branca. Advogado, Emanuel observa que seu título pouco vale para defender Efigênia, sua jovem namorada negra, vítima dos abusos e estupro do homem branco. Seu posterior desprezo, desdém e repúdio de Efigênia, que passa a se prostituir, vem na mesma medida de sua reflexão sobre a esposa branca, Margarida. Seus ciúmes e desconfianças de uma suposta traição, nunca confirmada (à la Otelo), terminam com o assassinato da esposa, uma outra vítima imolada no altar dos efeitos das práticas do racismo e da misoginia ali refletidas e determinantes nos desfechos das personagens. [...]
Como em Sortilégio, acompanhamos em Além do rio (Medea) [de Agostinho Olavo] a autoconscientização da persona negra, o abandono da máscara branca e a eleição da postura revolucionária, que vão guiar suas novas atitudes e ações insurgentes. Uma recriação dramatúrgica preciosa do mito de Medeia e da tragédia de Eurípedes.
Emilio Paroli, Aparecida Bitencourt (sentada no chão), Marina Gonçalves (na cadeira), Abdias Nascimento, Noêmia Santos e Ruth de Souza em ensaio da peça Auto da noiva, de Rosário Fusco. Direção: Abdias Nascimento. Cenário: Tomás Santa Rosa. Teatro Phenix, Rio de Janeiro, 1947. Acervo Abdias Nascimento / IPEAFRO. © José Medeiros
Filhos de santo, de José de Morais Pinho, nos apresenta personagens negros e brancos submetidos aos tensionamentos raciais e de gênero que se enovelam em conflitos intransponíveis e fracasso das relações romanescas. A complexidade das relações raciais se postula no enredo de tensionamentos no âmbito de uma família negra. [...]
Aruanda, de Joaquim Ribeiro, apresenta o cômico e o dramático no tratamento da negrura, destacando uma caricatura ou construção exagerada do negro, através do candomblé, evidenciando um tipo de exótica teatralidade baseada no fomento do estereótipo e da subcultura.
Anjo negro, de Nelson Rodrigues, configura um modo surrealista e crítico da perspectiva racista e de gênero. O protagonismo negro e feminino emerge como uma revisão crítica e deformadora das tradições e ideologias do patriarcado, no que se refere à sexualidade e à negrura, expostas nas relações amorosas e sociais com uma dramatização do negro e feminino, que extrapola a moralidade e o moralismo social. [...]
O emparedado, de Tasso da Silveira, homenageia o poeta Cruz e Sousa, tendo como foco o tema da frustração e da alienação do protagonista negro, em uma narrativa que entrelaça elementos realistas e simbólicos, e que expõe o tema da negrura e da marginalização em sua representação dramática e estética.