Sagacidade e sensibilidade: o escritor Botho Strauss faz 70 anos
- crítica teatral

Sagacidade e sensibilidade: o escritor Botho Strauss faz 70 anos

artigo por MICHAEL KRUGER, traduzido por ALICE DO VALE — Praticamente desconhecido no Brasil, Botho Strauss é um dramaturgo preocupado sobretudo com as nuances e detalhes do texto visando a encenação. Nesta quinzena, a Temporal traz as palavras do editor alemão de Strauss, Michael Krüger, escritas para a imprensa alemã em 2014, em comemoração ao aniversário de 70 anos do autor, a fim de lançar luz sobre uma figura enigmática, porém central para a dramaturgia alemã contemporânea

O escritor e dramaturgo Botho Strauss (quase) nunca é visto e jamais pode ser pego, apreendido. Isso tem menos a ver com sua notória timidez diante de muita gente com tantas opiniões, e se relaciona mais à sua concepção sobre o escritor contemporâneo, concepção esta que o impede de expor sua pessoa. Assim, não há novas entrevistas, novos artigos sobre problemas políticos ou sociais, mesmo que estejam latejando, os talkshows seguem sem sua presença. Isto é, por um lado, algo a se lamentar, porque qualquer um que já tenha tido contato alguma vez com Botho Strauss fala de uma pessoa erudita, sagaz, engraçada e sempre afiada, que consegue perceber e analisar nosso mundo em comum nos mínimos detalhes; por outro lado, é possível entender bem sua quebra de comunicação com a sociedade: melhor não dizer mais nada do que virar parte da imbecilização via Twitter. A sua raiva eloquente da palavra “comunicar” em si já é proverbial. “Um autor se comunica com seu leitor. Ele busca seduzi-lo, entretê-lo, provocá-lo, animá-lo. Quanta riqueza dos movimentos internos (ainda vivos) e de suas expressões é engolida por essa palavra brutal devoradora de lixo!”. 

Herança desperdiçada 

Assim, quem quiser uma imagem dele, uma que diga mais do que as fotos publicadas ocasionalmente, precisa ler seus livros e textos ou ver suas peças – o que, a propósito, foi se tornando impossível, desde que o teatro de língua alemã se afastou das peças linguisticamente artísticas, “realizando” “projetos” ou a dramatização de romances que expressamente não foram pensados para o palco. Para um leitor apaixonado como Botho Strauss, é um horror que o teatro seja também um responsável pela diminuição da capacidade de leitura, pois quem vivencia Anna Kariênina em duas horas no palco, não sentirá vontade de sacrificar por ela um mês de sua vida. 

Com o fim da grande arte da representação, a cortina também caiu sobre as mais de vinte peças de Botho Strauss, nas quais todos os atores significativos da sua geração puderam mostrar seu talento excepcional, de Jutta Lampe e Edith Clever a Cornelia Froboess e Bruno Ganz, de Gisela Stein a Peter Fitz. 

Que o dramaturgo mais importante do período pós-guerra, que como dramaturgista, crítico e autor fez comprovadamente mais pelo teatro do que seus críticos, nem mesmo por ocasião dos seus setenta anos tenha sido trazido aos palcos, naturalmente com um novo olhar, só pode ser o reconhecimento da vergonha; a vergonha de se ter desperdiçado uma grande herança, a que continuou a ser desenvolvida por Botho Strauss de modo tão brilhante. Ainda está por ser feita a análise sobre o motivo de terem literalmente afundado na lama, em uma única geração, o nome do significativo teatro de atores em língua alemã. Não se trata mais de arte, mas somente de salvação: primeiro, Hamburgo precisa ser salva, depois, Viena, agora, Düsseldorf; no palco, estão equipes de salvadores com mangueiras de água, mas nenhum ator. Todas as justificativas para essa quebra, que de algum modo clamam pela dissolução da autoridade do texto e pelo direito à realização pessoal do diretor e do ator, não são suficientes. Talvez a próxima geração identifique melhor quais energias não renováveis foram desperdiçadas aqui. 

Botho Strauss nunca fez segredo sobre o que acha do assim chamado novo teatro e, apesar de certamente lhe causar sofrimento o fato de que nenhum jovem diretor considere realizar novamente a peça Der Park [O parque], a variação de Sonho de uma noite de verão, e nem mesmo uma jovem Lotte surja para interpretar de uma forma atual os comportamentos desesperados de Gross und Klein [Grande e pequeno], ele nunca se iludiu achando que o interesse da área teatral pudesse se voltar novamente a ele. Uma nova estreia ainda seria possível, mas encenar uma de suas peças? 

Assim, não somente seus ensaios reunidos e críticas sobre teatro, mas também a dramaturgia desenvolvida no seu (ainda totalmente desconhecido) romance de desenvolvimento Der junge Mann [O jovem homem] podem ser lidos como um chamado enfático por um gênero há muito desaparecido. 

Nos volumes publicados regularmente com apontamentos ou prosa curta, no jornal da reflexão, do sentimento e dos antepassados (o que é tudo menos um diário), Botho Strauss sempre apresentou sua escrita (e também sua falta de ambição em escrever mais romances). Isso significa: “Eu só preencho as pequenas lacunas que meus autores preferidos deixaram nos seus livros. O que eu escrevo, eles também poderiam ter escrito. Vez ou outra eles têm uma ideia atrasada, póstuma – para isso que eu sirvo.” Ele pertence, assim, ao grupo dos “continuadores da escrita”, os monges zelosos que copiam o que foi escrito com erros inteligentes de onde, possivelmente, em algum momento, como nos erros de cópia da evolução, se desenvolve um outro gênero aforístico.

Esse gênero aforístico nunca se tornou realmente popular, ao contrário do romance, da narrativa e, também, do ensaio filosófico, apesar de Sudelbüchern [Cadernos de rascunho] ou Blütenstaub [Pólen], de Lichtemberg, e do Allgemeinen Brouillon [Rascunho geral], de Novalis, apesar dos aforismos de Nietzsche e de Aufzeichnungen [Apontamentos], de Canetti. Seria a nossa tendência a uma sistemática meticulosa a razão pela qual se atrofiam muitos dos nossos olhos compostos, que veem e fazem relações? Enquanto até mesmo os diários, que conscientemente falam sobre algo que não diz respeito a ninguém, ainda se saem bem, os livros de ideias, os próprios e os estrangeiros (de Valéry e Henry James até Davila e Cioran), passam a vida nas sombras. Assim, Botho Strauss pode notar irônico e resignado: “Se eu comparasse o sucesso da minha atividade como autor ao de um distribuidor de panfletos na Antártida, a comparação não valeria mais no presente, pois lá já existem expedições massivas.” Aparentemente, esses livros não estão previstos em nossos planos de aprendizado. Botho Strauss, que lida generosamente com suas ideias, oferece também uma instrução de leitura: 

“Como lemos uma coleção de frases pequenas e amplas? Fechamos o livro depois de cada achado e refletimos sobre a frase? Não, lemos algumas páginas, examinamos o que achamos mais notável, retomamos o trecho. Trabalhamos com a assimilação. É impossível consumir. Nada para ratos de leitura. Nada para sabichões.”

Um elixir essencial

Se em algum momento houve uma atração pelos livros de notas – ou pelo breviário excelente de Sebastian Kleinschmidt Allein mit allen [Só entre todos] – então, eles podem se tornar um elixir especial: com grande sagacidade e sensibilidade, surge à frente dos olhos do leitor um guia para enxergarmos com mais exatidão, como nenhum outro autor do nosso tempo desenvolveu. Desde o nascimento, o vir ao mundo, até a morte, são contempladas as estações do reconhecimento e do entendimento e da despedida, mesmo que o autor seja sempre reconhecido como um contemporâneo um pouco distante. 

Seria uma grande negligência rejeitar sem necessidade essa companhia.


* O escritor Michael Krüger foi diretor da editora Hanser até 2013, ano em que lançou o volume de poemas Umstellung der Zeit [Alteração do tempo] pela Suhrkamp.

 ** Alice do Vale também assina a tradução da edição em português brasileiro de Trilogia do reencontro, de Botho Strauss, publicada pela Temporal em fevereiro de 2021.