O texto, a cena e o texto da cena – Fruições, limites e dilemas da literatura dramática
- crítica teatral

O texto, a cena e o texto da cena – Fruições, limites e dilemas da literatura dramática

artigo por IZAK DAHORA – Ao pensar sobre dramaturgia e suas múltiplas possibilidades, o ator, escritor e professor Izak Dahora reflete também sobre o contexto brasileiro. Conforme destaca, em um país de proporções continentais e contribuições étnicas, culturais e teatrais tão diversas como o Brasil, o fazer dramatúrgico alimenta-se da multiplicidade de suas matrizes de conhecimento, como as ligadas aos povos originários e afrodescendentes. Nesse sentido, o teatro nos possibilita formas ricas e variadas de conexão com a realidade e com a manifestação da imaginação em suas variadas formas.

Como artista-pesquisador e professor na área de ensino superior, lecionando disciplinas de Dramaturgia e outras a ela ligadas, considero oportuna a (re)discussão sobre a efetividade da leitura de textos dramáticos. Isto porque é reconhecível o crescimento de publicações e de editoras dedicadas à veiculação de literatura dramática.

A rigor, o texto dramático só se consuma em sua plena finalidade quando tornado fenômeno encarnado e tridimensional pela encenação. Contudo, vivemos em uma civilização de forte tradição fundada na palavra escrita e, com isso, o teatro ocidental não se furtou a basear suas obras em textos escritos. Por conta disso, ademais, temos acesso, por exemplo, a tragediógrafos antigos como Ésquilo, Sófocles e Eurípides ou comediógrafos como Aristófanes e Menandro, autores ocidentais seminais. Ou seja, o texto escrito é para a arte teatral, no mínimo, um agente fixador e documental que nos leva a supor e indiciar a estética teatral de cada período histórico.

 Ainda assim, o teatro, que não é uma ciência exata – não mesmo –, permite que tenhamos acesso a textos dramáticos cujos atos de leitura em si podem ser de extrema fruição. Como as peças de Shakespeare, com suas concisas rubricas, deixando escoar a ação, o diálogo e a tensão dramática das paixões humanas tão exemplarmente retratadas. Ou peças de Nelson Rodrigues – ainda que uma paradigmática Vestido de noiva (1943) sinalize modernamente a particular e intensa demanda que aquele texto (e seus três planos narrativos) tem da encenação.  

Uma das perguntas que lanço aos meus alunos e alunas de dramaturgia, logo nas fases iniciais de disciplina é: “Teatro é literatura?”.

Pausa. Os alunos e alunas olham-se, alguns balbuciando uma resposta, mas ante o inusitado da pergunta, permanecem calados.

Com efeito, teatro é, sim, em certa medida, literatura, pois comporta normalmente um roteiro por escrito das ações a serem desempenhadas no espetáculo. A propósito, Marcos Bernstein oferece uma definição perspicaz acerca do texto dramático – e curiosamente recorro a um roteirista de cinema para contribuir nesta reflexão que é, de partida, teatral, mas sabemos que ambos (teatro e cinema) são veículos de dramaturgia:

          O roteiro permite aos profissionais que trabalham no filme ter a noção do que vão fazer. Ele é a melhor maneira que encontraram para que todo mundo tenha um ponto de partida em comum. A partir daí – e dependendo do tipo de diretor e do filme – o roteiro será seguido de maneira mais ou menos rígida. Mas, geralmente, ele é um plano seguido com bastante fidelidade, porque é a peça que sai do zero. É de onde você consegue sair de um conceito para algo mais concreto. É pelo roteiro que se começa a visualizar o filme que o diretor quer fazer. Sem ele, o cinema narrativo não consegue dar um passo adiante (BERNSTEIN, 2015, p. 328).

A peça dramatúrgica é, pois, um texto-guia da sequência dos acontecimentos ou fábula[i] – que o cinema logra e elucida em chamar de “roteiro” –, a base comum para um trabalho de eminência coletiva (como é a arte dramática) e, que tal qual ponto de partida que é, demanda escrita objetiva e lacunar, pois será preenchida pela criação de outros segmentos criativos e técnicos. O “escritor de teatro” ou dramaturgo precisa ter essa consciência.

E ainda quanto a esta mesma consciência, aprecio e trago duas definições de outro roteirista brasileiro, Doc Comparato:

  • “O roteiro é a crisálida, o produto audiovisual [ou teatral] é a borboleta”;
  • “O roteiro é o princípio de um processo visual e não o final de um processo literário.”

 
A leitura do roteiro permite e exige imaginação, pois, como não se trata de texto épico, as informações não têm o espaço e o tempo de desenvolvimento típicos da prosa,[ii] mas são apontadas para serem preenchidas pela expressividade trazida por direção, luz, som, interpretação, arte etc.

Como se pode perceber, há dois elementos capitais ao se abordar o campo da literatura dramática: 1) que ela não existe sem relação com a encenação e 2) que dramaturgia e encenação são estruturas de naturezas diversas (a palavra escrita e a tridimensionalidade de corpos e objetos em presença), embora partícipes de um trabalho cooperativo.

Por conta dessa natureza diversa, dramaturgo e encenador têm seus momentos de arestas (que precisam ser elaboradas) ou mesmo diferenças que podem se colocar como insuperáveis. Certa vez, em uma reunião de equipe de uma produção de TV (uma novela), ouvi o nosso icônico e inesquecível diretor de TV e cinema Carlos Manga dizer, como lhe era peculiar, de maneira anedótica e sábia: “O problema de todo diretor é não entender que todo autor é também um pouco diretor; e o problema de todo autor é não entender que todo diretor é também um pouco autor. Por isso, eles brigam”.

A partir dessas tensões entre texto e cena, remeto-nos à crítica Barbara Heliodora, que sintetizou a evolução histórica do teatro envolvendo texto e cena, e desvelando especial olhar sobre o texto:

          O teatro, ou seja, o conjunto de texto e encenação, é uma arte fugidia, pois, infelizmente, deixa de ser teatro mesmo quando é fielmente documentado, ou quando é adaptado para o cinema ou a televisão. Por isso mesmo, a história do teatro é mais a história do texto dramático do que do espetáculo, uma riqueza infelizmente perdida graças à sua própria essência. Isso não impede que seja necessário ter sempre em mente que as linguagens que o compõem são várias e que, em todos os grandes momentos de sua história, o teatro viveu um equilíbrio delas todas, sem que texto ou encenação fossem dominantes no espetáculo (HELIODORA, 2013, p. 15).

Com a modernização teatral, contudo, a leitura de boa parte dos textos dramáticos tornou-se especialmente tensa. A crise (ou problematização) da ação, do diálogo – entre outras crises –, tão bem-posta teoricamente por Peter Szondi (2011), contraria talvez o equilíbrio sinalizado por Barbara Heliodora e evidencia a emergência de uma valorização da encenação. Neste contexto, ler teatro (em autores como Brecht ou Beckett, ou em roteiros de espetáculos dirigidos por Bob Wilson, Gerald Thomas, Bia Lessa, Enrique Diaz, Márcio Abreu, Márcio Meireles, Grace Passô...) pode ser mais desafiador, já que “pressiona” sobre a recepção uma inarredável conformação cênica/plástica/visual para compreensão de elementos trazidos e intensificados pelo texto, o que o encenador busca plasmar no palco. .

É nessa modernização, fase embrionária do teatro contemporâneo, na transição do século XIX para o XX, que a tradição textocêntrica da cena passa a ser questionada, provocando novas acepções da escrita dramatúrgico-cênica.

Novos sentidos da escrita – O texto da cena

O processo de modernização da arte teatral trouxe como um de seus questionamentos-chave a ascendência da literatura à cena (sobretudo por conta da tradição do drama burguês[1]). Pretendeu-se utilizar a palavra, não mais como centro irradiador da criação teatral, porém. A palavra deveria estar cada vez mais inserida no empirismo da combinação operada entre os diversos elementos do palco.

Disso decorreram diversas poéticas que tiveram na figura do encenador moderno, o autor do espetáculo ou “poeta da cena”, a articulação de tantos elementos e a produção de sentido(s), compondo e escrevendo a tessitura cênica. A ideia de escrita e de texto é, portanto, ampliada (PICON-VALIN, 2013).  

Importante registrar que tal crítica da modernização teatral à perspectiva textocêntrica da cena (de reflexos contemporâneos) não inviabiliza a existência hoje de espetáculos ancorados em dramaturgias de autores e autoras que privilegiam a narrativa e o diálogo, por exemplo. A despeito de perspectivas pós-dramáticas (LEHMAN, 2007), para muitos a fábula ainda se faz viável, mesmo que com desvios, como postula Sarrazac (2013).

Diversos dos renovadores do teatro investigaram outras artes, outras culturas de manifestações espetaculares e suas tradições, além de propor suas próprias teorias e poéticas da cena. No interior de novas perspectivas da criação apoiadas no entendimento do teatro por meio da pesquisa, do laboratório, da criação colaborativa, da performatividade e da sala de ensaio, irrompe(ra)m novas práticas e conceitos dramatúrgicos como as “dramaturgias do corpo” ou as “dramaturgias do ator”:

          (...) campo que cresceu, fertilizado por processos mais participativos de criação do texto cênico (...). Esse termo pode abarcar muitas acepções; no limite, concerne ao tanto que o ator pode funcionar como criador e/ou ordenador de enunciados textuais. Na dimensão que aqui nos concerne, referimo-nos aos textos-espetáculos nos quais as figuras do autor e do ator se confundem (GARCIA, 20, p. 322).

O que tal panorama de possibilidades dramatúrgicas (heterodoxas) atesta são saberes do corpo que sempre existiram, embora marginalizados por uma cultura eurocêntrica de enfatização do logos (razão), e que encontraram barreiras estruturais no Ocidente, sobretudo a partir da Idade Moderna e da hegemonização do drama burguês, que obliteraram tradições como a própria Commedia dell’arte (de origem italiana “mas” de base popular) – a um só tempo entendedora da importância dos roteiros (canevacci) e de senso de criação baseado nas invenções corporais e no  treinamento físico de seus intérpretes.

Em um país de proporções continentais e contribuições étnicas, culturais e teatrais tão diversas como o Brasil, o fazer dramatúrgico alimenta-se da multiplicidade de suas matrizes de conhecimento, como as ligadas aos nossos povos originários e afrodescendentes. Leda Maria Martins (2021) aborda epistemes africanas, que exploram as inter-relações entre corpo, tempo(s), performance, memória(s) e produção de saberes, as quais diferem da compreensão linear do saber e do tempo euro-ocidental moderno, que rejeita o universo mítico da ancestralidade (espiralar). Tais epistemologias desafiam o próprio registro da escrita e da literatura tradicionais:

           Se considerarmos que os africanos, em sua maioria, vinham de sociedades que não tinham a letra manuscrita ou impressa como meio primordial de inscrição e disseminação de seus múltiplos saberes, podemos afirmar que toda uma plêiade de conhecimentos, dos mais concretos aos mais abstratos, foi restituída e repassada por outras vias que não as figuradas pela escritura, dentre elas as inscrições oral e corporal, grafias performadas pelo corpo e pela voz na dinâmica do movimento. O que no corpo e na voz se repete é também uma episteme (MARTINS, 2021, pp. 22-23).

Nessa perspectiva, resgatada pela arte e pelo teatro contemporâneos, a noção convencional de dramaturgia como estrutura verbal, fixa e primordial é ressignificada.

Sejam de proposições dramatúrgicas mais tradicionais ou não, o fato é que publicações de dramaturgia (e congêneres, como edições acerca de processos de criação cênica, em teatro, cinema e TV), como as que florescem hoje, são de extrema importância, pois na medida do que uma publicação pode alcançar – e isto não é totalmente mensurável –, esta será sempre uma possibilidade de fruição estética e/ou documentação de fenômeno tão efêmero como a arte teatral.  

“Tratai bem os atores.
Eles são a crônica e o breve resumo dos tempos.”
William Shakespeare

 Referências bibliográficas

ARISTÓTELES. Poética. Tradução de Eudoro de Souza. In. Metafísica: livro 1 e livro 2; Ética a Nicômaco; Poética. São Paulo: Abril Cultural, 1979.

BERNSTEIN, Marcos Apud PARAIZO, Lucas. Palavra de roteirista. São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2015.

COMPARATO, Doc. Da criação ao roteiro: teoria e prática. São Paulo: Summus, 2018.

GARCIA, Silvana. A dramaturgia dos anos de 1980/1990. In. FARIA, João Roberto; GUINSBURG, Jacob (Orgs.). História do teatro brasileiro II. São Paulo: Perspectiva: Edições Sesc São Paulo, 2013.

HELIODORA, Barbara. Caminhos do teatro ocidental. São Paulo: Perspectiva, 2013.

LEHMANN, Hans-Thies. Teatro pós-dramático. Tradução de Pedro Süssekind. São Paulo: Cosac Naify, 2007.

MARTINS, Leda Maria. Performances do tempo espiralar, poéticas do corpo-tela. Rio de Janeiro: Cobogó, 2021.

PICON-VALIN, Béatrice. A arte do teatro: entre tradição e vanguarda: Meyerhold e a cena contemporânea. Organização de Fátima Saadi e tradução de Cláudia Fares, Denise Vaudois e Fátima Saadi. Rio de Janeiro: 7Letras; Teatro do Pequeno Gesto, 2013.

ROSENFELD, Anatol. O teatro épico. São Paulo: Perspectiva, 1997.

SARRAZAC, Jean-Pierre. Sobre a fábula e o desvio. Tradução de Fátima Saadi. Rio de Janeiro: Teatro do Pequeno Gesto; 7Letras, 2013.

SZONDI, Peter. Teoria do drama moderno. Tradução de Raquel Imanish Rodrigues. São Paulo: Cosac Naif, 2011.

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Izak Dahora é doutorando em Artes (UERJ), mestre em Arte e Cultura Contemporânea (UERJ) e graduado em Artes Cênicas (UNIRIO). Professor nos cursos de Teatro, Cinema e Produção Audiovisual da Universidade Estácio de Sá e na pós-graduação em Literatura, Arte e Pensamento Contemporâneo (PUC-Rio). Ator há 24 anos em teatro, cinema e TV. Autor do livro Arte total brasileira – A teatralidade do “Maior Show da Terra” (Ed. Cândido).

[1] Tradição iniciada no século XV, com a emergência da classe social burguesa, tendo seu ápice nos séculos XVIII e XIX.  

[i] Termo aristotélico, prescrito na Poética, provavelmente registrada entre 335 a. C. e 323 a.C.

[ii] Acerca de gênero épico ou narrativo e de cada uma das chamadas arquiformas literárias, recomendo a leitura da Parte I – A teoria dos gêneros do livro O teatro épico, de Anatol Rosenfeld.