O testemunho da ausência em "Savannah Bay"
- crítica teatral

O testemunho da ausência em "Savannah Bay"

artigo por LAURA MASCARO | Para finalizar outubro, Laura Mascaro escreve sobre a questão do testemunho de eventos não vividos e os consequentes impactos dessas lacunas em "Savannah Bay", de Marguerite Duras. Destaca-se, pela participação indireta em tais eventos, o testemunho em segunda mão, onde a memória desempenha um papel central. Própria da literatura durasiana, em "Savannah Bay" lemos a atividade de (re)escritura, que envolve lembrança, esquecimento, imaginação e recriação do passado no presente.

Savannah Bay é a presença que se cria a partir da erosão e da ausência. Uma das questões centrais da peça é a incógnita do testemunho daquilo que não se viveu, da reconstrução de um evento ao qual estivemos ausentes, mas que marcou profundamente nossa vida. Trata-se do testemunho em segunda mão. A memória é central na obra de Marguerite Duras, estando irredutivelmente presente em sua atividade de (re)escritura realizada como um movimento de lembrança, esquecimento, imaginação, recriação e reordenamento do passado no presente Madalena narra todos os dias o amor e a morte de sua filha para sua (suposta) neta. Todos os dias, juntas em um jogral, elas buscam preencher a lacuna daquele evento que não foi testemunhado pela mãe:

Madalena: Fiquei em casa, no escuro das persianas fechadas por causa do calor. A casa é sombria, sufocante. Eu sei que ela foi até a pedra branca.” (DURAS, 2023, p. 126)

 

[...]

 

Madalena: (Tempo) Era de noite, chovia. Acontece muito nessa região, no final do verão. (Tempo) Ela tinha deixado a mãe dela também. (Silêncio) Entre eles dois eles não queriam nada. (DURAS, 2023, p. 136)

E nem pela criança que acabara de nascer:

A Jovem: (Tempo) Uma menininha nasceu nesse dia aí, o da morte, sim. (Tempo) Aqui a memória está clara, luminosa. Lembra, estava no jornal: ela teria deixado seu leito para ir até as lagoas… (DURAS, 2023, p. 135)

Ambas (re)contam a estória como esta teria se dado de forma obsessiva, como é adequado para o evento que não é assimilado ou experienciado de forma plena:

A Jovem: Conta de novo aquela história.

 

Madalena: Todo dia você quer essa história.

 

A Jovem: Quero.

 

Madalena: De tanto contar, todo dia, acabo confundindo… as datas… as pessoas… os lugares… (DURAS, 2023, p. 118)

Madalena, a mãe, tem sua memória rasurada pela idade e a jovem sofre do apagamento da memória dos primeiros dias de vida, pois a data da morte de sua mãe coincide com a de seu nascimento - “É sobre a memória falha de Madalena que ela constrói a imagem de sua infância, se seu nascimento [...]” (DURAS, 2023, p. 54). Curiosamente, não se pode testemunhar nem o próprio nascimento e nem a própria morte. Ambas são levadas a representar. A velha atriz passou toda a sua vida representando aquela estória em sua imaginação e nos palcos, até que se tornasse uma peça de ficção, e a jovem herda o fardo dessa representação que se repete diariamente.

Para compreendermos como a escritura durasiana se realiza a partir da memória, um conceito que devemos explorar é o de ombre interne (sombra interna):

“[...] como uma captura (de fora) que passa pelo engolfamento na sombra interna, e ali se afoga, que morre com a memória clara e depois que, um dia, sai, ali, diante de nós, evidentemente irreconhecível, e recobre o papel branco.” (DURAS, 2014, p. 325)

Frisamos que a memória de Duras não lamenta o esquecimento, mas o vê como uma condição para a própria escritura – “Esse ‘esquecimento’, é o escrito não escrito, é a escritura mesma” (DURAS, 2014, p. 317) –, que serviria como uma fonte de recriação. Embora a lembrança contenha em si um movimento que é destrutivo, a memória implicada na narrativa reconstrói a tessitura do vivido, convertendo-o em experiência. Os acontecimentos podem sofrer uma completa transformação pelo esquecimento, pelo armazenamento e pela rememoração, o que não torna sua narrativa menos veraz. A ombre interne é onde se inscrevem as parcelas mais significativas do vivido que irão sofrer alguma transformação que é operada pela narrativa mnemônica e no limite ficcional. Savannah é só o que resta dessa memória, como seu rastro: "Savannah chega na velocidade da luz. Desaparece na velocidade da luz. As palavras não têm mais tempo". (DURAS, 2023, p. 116)

Na literatura de Duras, a impressão mnemônica envolve também as sensações causadas pela experiência e as transformações na própria identidade. E a memória durasiana possuiria a estrutura do hymen, que constitui a fusão entre a perpetração e sua lembrança, entre a presença e a ausência, o passado e o presente, a sensação presente e a imagem passada.

A narrativa opera a filtragem do essencial, por meio de uma transfiguração do vivido, que possui estreita relação com a erosão da identidade dos personagens, como acontece entre Madalena, a Jovem e Savannah, que se confundem seja na representação da peça que nunca existiu - mãe e avó interpretam o papel de filha -, seja no nome que a Jovem assume ao final da segunda versão da peça - o nome de Savannah. O testemunho da estória de Savannah é composto por uma indecidibilidade enunciativa que comporta em si a posição do terceiro espectador, ou seja, um certo deslocamento do eu. Essa indecidibilidade identitária está presente em outras obras de Duras, como Abahn, Sabana, DavidHiroshima mon amourDétruire dit-elle.

A memória na obra de Duras possui também uma dimensão espacial, deambulatória, em que os espaços do interior se decifram em espaços exteriores. Um desses elementos espaciais significativos, marcador de uma memória coletiva porque partilhado por todos, é o mar. Savannah Bay é um local sagrado, no sentido antigo da palavra, “separado”. É um lugar indecidível, na realidade, entre a história e a eternidade. Entre a praia e o mundo há o mar, um espaço intransponível. É o desconhecido de que os homens têm medo, apesar de atraí-los profundamente, o lugar do transbordamento do eu, da loucura. E é nesse espaço que Savannah vai mergulhar e desaparecer para que se perpetue, com a morte, um amor total: "Ela furou o mar com seu corpo. E desapareceu no buraco de água. A água se fechou atrás." (DURAS, 2023, p. 121)

Leyla Perrone-Moisés (2013) comenta: “Já tem sido observada a importância da água na obra durasiana: origem da vida, poder de destruição”. E, em Savannah Bay, o mar é a cripta de Savannah:

Madalena: [...] (Tempo) Não sei se chegaram a achar seu corpo. Nunca perguntei isso. (Tempo) Não sei mais. (DURAS, 2023, p. 136)

E aqui mais uma ausência: a ausência do corpo e de uma sepultura visível, o que torna o luto impossível. A coincidência do nascimento e da morte, como duas experiências para as quais não cabe o testemunho direto, também está presente no imaginário durasiano e mesmo em sua experiência de vida - durante a guerra, ela teve um filho morto no nascimento. Para Duras, o nascimento é uma experiência extremamente violenta, que ela equipara ao abandono e até mesmo ao assassinato, porque a criança é arrancada da proteção da noite e do corpo materno para a luz da vida (e da morte). Ela passa a estar marcada pela morte.

Finalmente, o ponto de partida para o testemunho daquilo que não foi vivenciado é a pedra branca - “É uma grande pedra branca no meio do mar. Plana, grande como uma sala. Bela como um palácio. Como o mar, do mesmo jeito.” (DURAS, 2023, p. 119). Esse elemento remete ao retângulo branco mencionado em obras envolvendo a personagem Aurélia, a pequena judia sobrevivente do holocausto, como o “pequeno retângulo branco de algodão” no vestido da menina em Aurélia Paris; o “retângulo branco da quadra de reunião” de Aurélia Vancouver.

Remete ao lugar textual, a folha de papel sobre a qual se alastra a escritura: “Eu não vejo nada equivalente ao espaço do retângulo branco da morte. É um espaço a preencher, é o lugar de nascimento de Aurélia Steiner. [...] A escritura, eu a encontro com Aurélia. Ela é onipresente Aurélia, ela escreve em todos os lugares ao mesmo tempo. Depois de Aurélia Steiner, eu não posso mais escrever, eu perco a escritura. Se eu não falo com essa sobrevivente, eu perco a escritura.” (DURAS, 2014a, p. 746 e 647)

No final da década de 70, depois de um período envolvida pelo alcoolismo, Duras recupera a escritura com Aurélia. Consegue novamente preencher o retângulo branco com sua escritura, que é sempre memorial. A memória substitui o evento e a narrativa substitui a memória de modo que ao final só resta o rastro. Savannah em seu maiô preto é a escrita que se espalha na página em branco. Savannah Bay é o rastro de uma memória de eventos ausentes e irrepresentáveis para Duras, para Madalena, para a Jovem e para a humanidade.

 

Referências

DURAS, M. Le Camion: suivi de Entretien avec Michelle Porte. In: ________. Œuvres complètes. Paris: Gallimard, 2014. v. 3, p. 267-336.

 DURAS, M. Savannah Bay. Tradução: Angela Leite Lopes. São Paulo: Temporal, 2023.

 DURAS, M. Les yeux verts. In: ________. Œuvres complètes.  Paris: Gallimard, 2014a. v. 3, p. 640-795.

 PERRONE-MOISÉS, L. A imagem absoluta. In: Duras, M. O amante. São Paulo: COSACNAIFY, 2013.

 

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Laura Mascaro é mestre em Filosofia e Teoria Geral do Direito e doutora em Literatura Francesa com período na Université Paris III.