O testamento de Vianinha
- crítica teatral

O testamento de Vianinha

Publicada originalmente no jornal "Movimento" (1975-81), a crítica escrita pela jornalista Ilvaneri Penteado há mais de quarenta anos destaca aspectos do pensamento de Oduvaldo Vianna Filho sobre o fazer teatral e o fazer político. Ao lembrar a trajetória de censuras impostas às duas últimas peças do autor – "Rasga coração" e "Papa Highirte" –, Penteado resume certeiramente as razões pelas quais os dois textos permanecem atuais nos dias de hoje.

Estreou no final da semana passada a peça Papa Highirte (Teatro dos Quatro – Rio de Janeiro), de Oduvaldo Vianna Filho, o primeiro dos grandes textos teatrais proibidos que conseguiu passar pela semiabertura da fatídica “gaveta”, que ainda mantém sob cadeado Patética,[1] de João Ribeiro [Chaves Netto], e muitos outros textos. Escrita em junho/julho de 1968, Papa Highirte foi escolhido como melhor texto do Concurso do Serviço Nacional de Teatro, mas imediatamente proibido pela censura. Diante da arbitrariedade e dos horizontes sombrios que o então nascente AI-5 anunciava, o SNT suspendeu o certame. Ele só foi reativado em 1975 e novamente a escolha do júri contrariava a censura: Rasga coração, obra póstuma de Via­nninha era a vencedora. Foi vetada. Só conseguiu a liberação há poucos meses e deve estrear em outubro, no Teatro Villa Lobos.

Papa Highirte, que estreia ao mesmo tempo em que transcorre o quinto aniversário da morte de seu autor (16/7/1974), é talvez o mais esperado acontecimento teatral deste meio ano. Em primeiro lugar, pela dimensão do autor, que durante toda sua vida batalhou por um teatro que apresentasse e dis­cutisse a nossa realidade. Vianinha fundou – com Guarnieri, Boal, Nelson Xavier, Francisco de Assis e outros – o Teatro de Arena, em São Paulo, que representou força viva e vitalizante dentro do teatro brasileiro. No início dos anos 1960, participou ativamente da construção do Centro Popular de Cultura, no Rio. Mais tarde ele faria uma rigorosa critica deste trabalho: “Não atuávamos ‘teatralmente’. Não quero dizer que não foram criadas obras de valor. A prioridade concedida à política não era absoluta. Permitia-se um certo espaço para conceber o teatro como arte. Contudo esse espaço estava sujeito às limitações da estética naturalista. A urgência da arte, como instrumento direto de libertação, impunha que lhe retirássemos qualquer aura estética, qualquer elaboração mais detida e aprofundada do real”.[2]

Papa Highirte e Rasga coração foram escritas após a reavaliação de Vianna sobre a real função do teatro. A primeira ele escreveu em plena efervescência de 1968Rasga coração é o testamento político de Vianna. Escrita em 1975, quando o país já mergulhara na completa escuridão e silêncio, esmagando pela violenta repressão. Ela expõe os erros de sua geração.

Ambas são peças de confronto. Papa Highirte é a radiografia da América Latina, seus entraves e caudilhos, sua herança colonial, a subserviência de seus governos ao imperialismo, a disputa pelo poder entre uma minoria que se reveza no poder. Nelson Xavier, diretor do espetáculo, disse ao Movimento na semana passada: “Papa Highirte interpreta a realidade de não se descobrir uma saída, de se viver sempre dominado. Ele desce à análise dos motivos que fazem a nossa humanidade colonizada, e que fazem os ideais de justiça, de liberdade e progresso serem estrangulados pela repressão brutal desse fascismo”.

Para Sérgio Britto – que interpreta Papa Highirte no palco – nesses dois últimos textos que Vianninha escreveu, ele conseguiu conciliar as duas correntes que dividiam e determinavam o teatro brasileiro, na década passada: a preocupação formal e a função social e política.

Segundo companheiros de luta e amigos de Vianinha, como Ferreira Gullar e Armando Costa, Papa Highirte e Rasga coração concretizam o pensamento expresso na sua última entrevista, poucos meses antes de morrer: “Acho que a responsabilidade do artista hoje é a da profundidade, e a tentativa desesperada de seguir o que disse Brecht: ‘Aprofunde o mais que puder, pois só assim poderá descobrir a verdade’”.[3]

 Ilvaneri Penteado. Movimento – 16 a 22 de julho de 1979.

[1] A peça Patética, escrita por João Ribeiro Chaves Netto, foi vencedora, anos depois, do Concurso Nacional de Dramaturgia realizado pelo Serviço Nacional de Teatro, em 1977, porém igualmente proibida, na sequência, pelo regime, tendo sido encenada apenas em 1980, com direção de Celso Nunes. Chaves Netto escreve a dramaturgia sob o impacto da morte de seu cunhado, o também dramaturgo, jornalista e militante Vladimir Herzog, em 1975. No texto, uma trupe circense leva à cena a trajetória de um casal de migrantes judeus iugoslavos que adotam o Brasil para viver após sobreviver à perseguição nazista na Europa. [Nota dos editores]

[2] Trecho de uma entrevista para o jornal Opinião.

[3] Em um trecho anterior desta mesma entrevista, Vianna indica que, no caso de Papa Highirte, essa reavaliação sobre a função do teatro implicou um retorno à tragédia: “Talvez essa Papa Highirte tenha mais sentido, lateje mais, tenha mais paixão pela vida, se apaixone mais pela riqueza da vida e enfrente com coragem a tragédia. Conquistar a tragédia é, eu acho, a postura mais popular que existe: em nome do povo brasileiro, a conquista, a descoberta da tragédia, você conseguir fazer uma tragédia, olhar nos olhos da tragédia e fazer com que ela seja dominada. Quando Sófocles escreveu a primeira tragédia grega o povo grego devia sair em passeata, em carnaval – “finalmente temos a nossa tragédia”, “descobrimos, olhamos, estamos olhando nos olhos os grandes problemas da nossa vida, da nossa existência, da condição humana”. Cf. “Entrevista a Ivo Cardoso”. In. Fernando Peixoto (org.), Vianinha: teatro, televisão, política. São Paulo: Brasiliense, 1983, p. 182. [Nota dos editores]

No banner: Tonico Pereira e Sergio Britto interpretam respectivamente Mariz e Papa Highirte na montagem de estreia no Teatro dos Quatro.