O poder de David Hare
- crítica teatral

O poder de David Hare

artigo por LARISSA LINDER — A cada início de ano, com frequência, avaliamos eventos do passado com o intuito de pensar o futuro; o que aprendemos com esses acontecimentos e de que forma eles ainda ecoam no presente? É esse o movimento que a jornalista Larissa Linder realiza no primeiro texto de 2022 do Blog da Temporal: uma viagem aos episódios que culminaram na crise dos mercados que marcou, em escala global, o ano de 2008. Especializada em economia, Larissa tanto aborda o texto de David Hare publicado pela Temporal, O poder do sim, quanto o contexto do livro, de maneira jornalística, aproximando-se do teatro documental que marca a produção do autor

Ao se ler a peça O poder do sim: um dramaturgo procura entender a crise financeira, de David Hare, o que mais salta aos olhos é a imensa capacidade do diretor e dramaturgo de explicar o que economistas, jornalistas e acadêmicos por vezes se debatem para ensinar aos não versados em finanças: como aconteceu a crise de 2008.

Resultado da própria curiosidade de Hare em entender os meandros do último grande colapso financeiro global, o texto se mantém distante do hermetismo que a arte pode apresentar e que a economia tende a abraçar. A obra consegue ser popular no melhor sentido: é capaz de se comunicar com todos.

Não é um trabalho corriqueiro. Logo nos primeiros momentos da peça, um personagem deixa isso claro: “Como é que você vai colocar em cena coisas como a securitização de dívidas?”. E talvez aí resida o poder de Hare, o de traduzir, não só em termos simples, mas por meio de um texto afiado e com rigoroso senso crítico, o árido terreno da economia.

Possivelmente para tentar facilitar a tarefa, o autor optou por fazer parte da própria peça como personagem. Ao assumir uma postura ingênua, entre o honesto e o irônico, Hare se coloca em posição de expressar questionamentos básicos, e portanto fundamentais, como: “Vou te contar que isso me deixa confuso. Os banqueiros estimulando que as pessoas se endividem, acumulando dívidas sem olhar para os seus balanços patrimoniais e perceber o que estava acontecendo”.

O sarcasmo, repicado aqui e ali, convém em vários momentos. Além de dar ritmo, propõe uma conexão direta com o público. Ninguém, afinal, gosta de bancos – a não ser os banqueiros, talvez. E desconfio que tantos outros não reservem muita simpatia a economistas e jornalistas de economia, personagens incluídos na história.

Sob a ótica da explicação econômica, no entanto, talvez valesse falar mais a respeito do papel das agências de rating. Responsáveis, grosso modo, por dizer se um investimento é de risco ou não, essas empresas – em especial as três grandes: Moody’s, Fitch Ratings e Standard & Poor's (S&P) – atestaram como sendo de baixo risco os piores tipos de investimentos e as instituições relacionadas a eles, mesmo com o colapso financeiro logo ali. O banco Lehman Brothers tinha classificação de risco A2 (o que significa um investimento seguro) a dois dias de quebrar; o Bear Stearns também tinha uma nota alta a uma semana da falência.

Na prática, essas empresas davam o selo de bom investimento a quem as pagasse por isso. A Moody’s conseguiu quadruplicar seus lucros entre 2000 e 2007. Com o certificado das maiores do ramo, quem poderia dizer o contrário? Após o derretimento do mercado, com seus diretores sendo chamados a depor perante o Congresso estadunidense, a defesa mais comum foi que suas notas a respeito dos investimentos eram “apenas opiniões”.  

Hare, por outro lado, faz um belo trabalho ao contar o desmonte da regulação dos mercados. A crise de 2008 não foi, afinal, um acidente, mas o resultado de um setor inteiro fora de controle, sob o véu da afirmação de que os mercados se autorregulam. Como se viu, não só não se autorregulam, como implodem e levam consigo economias inteiras. Quando só restam destroços, as instituições financeiras não são salvas pela mão invisível. Quem estava lá para resgatar os bancos – e o dinheiro de milhares de pessoas físicas – era o governo dos Estados Unidos, com US $700 bilhões dos contribuintes. 

A Islândia também tem uma história para contar a respeito da desregulamentação, e o próprio Hare cita o caso em O poder do sim. Em resumo, no ano 2000, o governo islandês iniciou uma política de desregulamentação ambiental e financeira. Ao mesmo tempo em que se passou a permitir a presença de empresas estrangeiras para explorar as riquezas naturais islandesas, os três maiores bancos do país foram privatizados e a especulação passou a ser a regra. 

Cinco anos mais tarde, essas instituições tinham uma dívida de dez vezes o PIB (Produto Interno Bruto) do próprio país. Também foram personagens deste roteiro as agências de rating, que, adivinhem, não viam nada de errado com os rumos da economia islandesa, até que a crise estourou por lá, levando poupanças de uma vida inteira, empregos e tudo o mais que pudesse ser arrastado junto.

Nos Estados Unidos, a história recente da desregulamentação começou com o presidente Ronald Reagan, em 1981, quando ele nomeou Donald Reagan, à época CEO do banco Merrill Lynch, para o cargo de secretário do Tesouro dos Estados Unidos. Em sua obra, Hare resume essa relação mais próxima entre os mercados financeiros e os governos. A certa altura do texto, uma jornalista diz: “Essa recessão foi desencadeada por um colapso no sistema financeiro. Se for feita uma legislação, dá para impedir que tudo aconteça de novo. Mas os políticos não têm essa determinação (...) eles imaginam: ‘Quando eu sair desse cargo, sabe, talvez eu possa fazer parte da diretoria de algum banco’”. 

Nesse sentido, é importante lembrar também o lobby do setor financeiro junto aos políticos, não só nos Estados Unidos, onde a atividade é regulamentada, mas mesmo no Brasil. Até pouco tempo atrás, os bancos estavam entre os maiores doadores de campanhas eleitorais do país.

Sem deixar de lado o fator humano – a ganância, a corrupção, a arrogância – que está presente em qualquer economia e, portanto, nas crises, O poder do sim vem em boa hora para o leitor brasileiro. Nunca é demais recontar os erros do passado, mesmo que sejam centrados em outro hemisfério, e comparar os caminhos outrora trilhados com os que se percorre agora por aqui. Quem sabe possamos perceber algo – e evitar o pior.

 

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Larissa Linder é jornalista especializada em economia, com passagens por Deutsche WelleDiário Catarinense e O Estado de S. Paulo.

 

No banner: David Hare (© Faber & Faber).