O método verbatim
- crítica teatral

O método verbatim

artigo por HERBERT BIANCHI — Herbert Bianchi nos conta o histórico que antecede o uso da técnica verbatim no teatro, sua influência, de início, no cenário britânico, e comenta a chegada da técnica e seus desdobramentos no Brasil

Na língua portuguesa, o dicionário indica que o termo “verbatim” significa: “de forma literal”; “exatamente nas mesmas palavras”; e “que corresponde palavra por palavra ao texto original”. Em um contexto cotidiano, por exemplo, fazer uma “ata verbatim” após o término de uma reunião, significa reproduzir tudo o que foi dito durante o encontro, sem deixar absolutamente nada de fora. No campo da arte, verbatim é também o nome que se deu a um tipo específico de teatro documentário. Costuma-se atribuir ao encenador alemão Erwin Piscator (1893–1966) o pioneirismo na utilização de documentos em cena e, por conseguinte, a invenção do teatro documentário. Trotz alledem! [Apesar de tudo!] (1925), de Piscator, é amplamente reconhecida como a primeira peça representante desse tipo teatral. Em sua montagem, o dramaturgo utilizou novas tecnologias, que incluíam a projeção de sequências de filmes da Primeira Guerra Mundial, além de discursos, trechos de notícias e fotografias daquele período. Ciente de que dera início à prática de um novo modelo de teatro, em 1929 o dramaturgo publicou o livro Teatro político (Civilização brasileira, 1968), dedicado à análise das especificidades de sua produção teatral.

As peças de Erwin Piscator exerceram grande influência no teatro documental britânico, especialmente no trabalho de Joan Littlewood (1914–2002). O espetáculo Oh, What a Lovely War! [Ah, que guerra adorável!] (1963), de sua autoria, narrou igualmente os acontecimentos da Primeira Guerra Mundial, com o uso de músicas e documentos do período, e teve sua importância reconhecida de imediato pela crítica da época.

Assim como as projeções de Piscator, o surgimento do teatro verbatim está intimamente ligado ao desenvolvimento tecnológico do último século: a invenção do gravador portátil, com o uso da fita cassete, é um exemplo de inovação que possibilitou aos documentaristas gravar entrevistas, pela primeira vez, com as pessoas em seus próprios ambientes, o que definitivamente ampliou as possibilidades dramáticas da técnica. As primeiras produções de verbatim de que se têm notícia foram dirigidas pelo britânico Peter Cheeseman (1932–2010), influenciado não somente por Littlewood e seu teatro político, mas também pela tradição documental do rádio, especialmente pelos programas de Charles Parker (1919–1980), que destacavam as vozes das classes operárias em suas transmissões. Um dos maiores trabalhos de Cheeseman, e a primeira peça considerada verbatim, foi Fight for Shelton Bar [Lutando por Shelton Bar], que estreou em Londres, em 1974, como parte de uma campanha contra o fechamento de uma importante siderúrgica localizada no coração da cidade britânica Stoke City, e foi encenada para um público de ex-trabalhadores da própria siderúrgica.

Desde então, ao longo das últimas décadas, a prática do verbatim tem ocupado lugar central no cenário teatral britânico, e é tida, inclusive, como uma das formas mais potentes de teatro político. Como afirmou Robin Soans (1947), famoso diretor e dramaturgo britânico: “não deve ser por acaso que no momento em que a arte de confundir se torna mais sofisticada, surge uma proliferação de teatro político”.[1] Das margens para o mainstream, o teatro verbatim é, hoje, encenado com frequência em algumas das maiores casas teatrais da Europa. Nesse cenário, o grande National Theatre de Londres é uma das instituições que merece destaque. Alguns expoentes notáveis da técnica incluem David Hare, cujas peças The Permanent Way [A via permanente] (2003), Stuff Happens [Coisas acontecem] (2004) e O poder do sim (2009; Temporal, 2020) foram lá encenadas.

Com o tempo, o teatro verbatim se proliferou internacionalmente. No Brasil, a primeira peça a utilizar a técnica, do início ao fim de sua concepção, foi Ao pé do ouvido (2015), do grupo teatral Núcleo Experimental, com dramaturgia minha, e de Rita Batata e Zé Henrique de Paula, que também dirigiram o espetáculo. A segunda montagem foi Do outro lado da rua (2016), novamente com dramaturgia e direção minhas. Mas a peça que tornou a técnica conhecida no Brasil foi provavelmente Hotel Mariana (2017), com dramaturgia que desenvolvi ao lado de Munir Pedrosa, também diretor do espetáculo. Hotel Mariana levou ao palco depoimentos reais dos sobreviventes da tragédia de Mariana, colhidos uma semana após o desabamento das barragens naquela cidade, em 5 de novembro de 2015. A peça foi indicada ao Prêmio Shell  de 2018, fez parte da Mostra Internacional de Teatro de São Paulo (MITsp) do mesmo ano. Em 2019, contou com apresentação no 14º Festival Palco Giratório (Sesc/RS) e participação na programação da 17ª Festa Literária Internacional de Paraty (Flip).

Finalmente, essa inconfundível maneira de fazer teatro, que incorpora palavras e discursos exatos proferidos por pessoas reais que vivenciaram determinado acontecimento histórico, e as coloca no palco de forma aberta e declarada em relação ao público, acabou por se tornar uma das plataformas mais instigantes e eficientes para abordar questões contemporâneas, isto porque ela permite tratar assuntos bastante atuais em um menor intervalo de tempo. Ainda é possível para uma peça de teatro verbatim oferecer informações confiáveis e necessárias ao público, colocando suas fontes no palco, ouvindo aqueles que em geral não são ouvidos. Talvez mais do que isso, seu maior mérito esteja em sua capacidade de produzir empatia nas plateias, colocando-as diante de situações que de outra forma elas não presenciariam.

 

Herbert Bianchi é diretor e dramaturgo. Desde 2015, dedica-se ao estudo e à pesquisa da técnica verbatim. Dirigiu, utilizando-se do método, as peças Do outro lado da rua (2016), Hotel Mariana (2017) e Projeto Revide (2019).

[1] Robin Soans, Verbatim Theatre: Contemporary Documentary Theatre. Londres: Oberon Books, 2008, p. 17.

No banner Hotel Mariana (2017) / Foto de Allan Bravos / Elenco (esq. para dir.): Bruno Feldman, Fani Feldman, Rita Batata, Isabel Setti, Clarissa Drebtchinsky, Rodrigo Caetano, Lucy Ramos e Angela Barros.