Na primavera de Wedekind, os sonhos nem sempre fazem dormir
- crítica teatral

Na primavera de Wedekind, os sonhos nem sempre fazem dormir

artigo por DIEGO CERVELIN — O psicanalista e doutor em Literatura Diego Cervelin mostra a faceta pulsante, e atual, da obra "O despertar da primavera", de Frank Wedekind, em texto sobre os motivos que levaram a peça a gerar interesse entre destacados nomes da psicanálise. Jacques Lacan chegou a escrever um prefácio à obra, afirmando que Wedekind antecipou Freud, "e muito".

Verdade seja dita: não estranha que os acontecimentos presentes em O despertar da primavera, peça escrita por Frank Wedekind em 1891, causem tanto interesse entre os psicanalistas, mesmo em momentos e circunstâncias tão diferentes. Basta observar dois exemplos especialmente eloquentes disso. Ainda em 1907 – ou seja, logo depois da primeira encenação do texto, que, em função da censura, pôde ocorrer somente em novembro do ano anterior –, Freud e seus colegas da Sociedade Psicanalítica de Viena não deixaram de fazer comentários entusiasmados em torno das inquietações de Wendla, Moritz, Melchior e dos demais personagens da peça, com uma curiosidade bastante destacada pela enigmática figura da Rainha sem Cabeça, que é mencionada no começo do segundo ato. Como se não bastasse, é interessante observar que alguns dos inúmeros questionamentos destacados por Wedekind também encontraram desdobramentos igualmente pungentes em um dos textos mais polêmicos escritos por Freud, os Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, publicados em 1905, com sucessivos acréscimos e reformulações até 1920. Por outro lado, já em 1974 – e, portanto, ainda em meio às agitações tão características do Maio de 68 –, Lacan escreveu nada mais nada menos do que um “Prefácio a O despertar da primavera”. Na verdade, tratava-se de um trabalho pensado para acompanhar os folhetos de apresentação da montagem francesa, contando, dessa maneira, com algumas ressonâncias das formulações aventadas por Lacan ao longo de seu último ensino. No prefácio, Lacan propunha algo muito além de simplesmente sublinhar com tintas psicanalíticas as vicissitudes dos personagens de Wedekind. Ou melhor, sem meias-palavras, ele afirmava que “o dramaturgo [...] antecipa Freud, e muito” (LACAN, 2003, p. 557).

Mas, afinal, quais seriam os motivos para todo esse reconhecimento? Talvez já esteja suficientemente claro que, por trás de um nome tão singelo quanto O despertar da primavera, Wedekind coloca em cena algo bastante diferente daquelas historietas que costumavam ocupar as tardes modorrentas da burguesia europeia. Assim, entre ironias e denúncias mais ou menos explícitas, esse caráter disruptivo da “tragédia infantil” – subtítulo da obra – pode ser percebido no decorrer de toda a encenação. Por exemplo, logo na primeira cena, Wendla Bergmann e sua mãe expõem alguns dos sentidos que seriam paulatinamente colocados em xeque no decorrer dos três atos da peça. Note-se que, nesse diálogo inicial, também se insinuam os aspectos mais fundamentais do próprio interesse psicanalítico pela obra. Nesse sentido, em linhas gerais, pode-se dizer que as duas desenvolvem uma conversa que gira em torno de como as mudanças no corpo de uma jovem de 14 anos implicam reformulações abruptas e não menos radicais precisamente nos arranjos que amparam uma existência. Ou melhor, diante da puberdade, marca-se um antes e um depois, algo que, nos termos da Sra. Bergmann, se materializa com uma certeza cortante e, ao mesmo tempo, surge desvelando uma zona de indecidibilidade entre aquilo que vem como pura constatação e aquilo que se desdobra com o peso de um decreto: “Uma moça crescida como você já não pode andar por aí com seus vestidinhos de princesa” (WEDEKIND, 2022, p. 35). Ora, se nessa primavera desenhada pelo dramaturgo os progressos da juventude assumem cores cada vez mais fortes, é porque, de cena em cena, elas conformam situações que se sucedem ora perpassadas de dúvida ora carregadas de angústia – quase como se elas se confundissem com as páginas de um primeiro catálogo dos choques, desencontros, perdas e frustrações que assolam as vidas dos adultos.

Pois bem, para usar uma terminologia cara ao meio psicanalítico, é possível dizer que os desdobramentos subjetivos da puberdade – com seus efeitos desestabilizadores das certezas vigentes anteriormente – tornam ainda mais evidente a percepção de que “não há saber sexual instintivo nos humanos” (RAMÍREZ, 2014, p. 08). Isso significa que, pelo menos entre os falantes, já não há como sustentar sem risco de equívocos que as mudanças da puberdade se traduzem em diretrizes claras e imediatas sobre como um sujeito deve proceder ou não diante de todos aqueles outros que lhe causam desejo. Esse saber sempre falho e traumático, em última análise, precisa ser construído singularmente, por cada sujeito, em uma amarração que demanda aportes do Real, do Simbólico e do Imaginário – tudo isso em face da contingencialidade que subjaz em seu modo peculiar e irrepetível de encontrar satisfações (físicas inclusive) enquanto faz uso do próprio corpo ou se dirige aos demais falantes e às suas circunstâncias mais ou menos conhecidas; em suma, tudo aquilo que, com alguma esperança (ou fantasia) de partilha, costuma-se circunscrever através da palavra “mundo”: “meu mundo”, “teu mundo”, “nosso mundo”. É claro que certos aspectos até podem ser agradáveis para muitos, mas isso não permite dizer que eles sejam igualmente interessantes para todos, isto é, que eles excitem (ou causem repulsa) da mesma forma.

Perceba-se, então, que um corpo libidinizado, vivificado pelas experiências de prazer e desprazer no contato com os outros falantes implica uma sorte de canteiro de obras. Na peça de Wedekind, esse canteiro se chama “primavera” e ele confina, de um lado, com os modos pelos quais as experiências do autoerotismo infantil foram direcionadas através das demandas e identificações propiciadas pelos mais próximos, como os pais, os professores. É nesse momento que nascem tanto as “princesinhas” quanto os “bons meninos”. No outro confim, encontram-se os eventos da vida propriamente “madura”, quando – como se espera – cada um é capaz não só de procriar e gerar vida, mas também de se dedicar às diferentes modalidades de cuidados de si e dos demais sujeitos – inclusive dos filhos. Trata-se, com isso, de uma conformação complexa e, às vezes, de fato complicada. Para exemplificar, ela envolve as possíveis satisfações sentidas no corpo (e diferentemente de antes) através do contato com um outro corpo, ou seja, um corpo de outro sujeito... sem esquecer as responsabilidades pesando ou se equilibrando sobre as costas de cada um. Uma conformação que, no fundo, no fundo, muitas vezes parece comportar especialmente as marcas de que algo escapou (ou nem se aproximou) do ideal.

É exatamente aqui que as tintas do despertar da primavera proposto por Wedekind adquirem sua máxima potência. Ou melhor, entre dúvidas e angústias, vergonhas e sentimentos ambivalentes mal compreendidos, as mudanças do corpo na puberdade fazem com que cada jovem sujeito, na adolescência, desperte para um verdadeiro impasse – um desencontro cujos desdobramentos precisarão se transformar até mesmo em objeto de um trabalho visceral de invenção, que, quando não acontece, pode redundar na passagem ao ato tão extrema que Moritz coloca em cena, quando se sentia como que “tragado por uma correnteza” (WEDEKIND, 2022, p. 98). Ora, não é raro que esse desencontro se faça sensível justamente nos momentos mais iniciais do encaminhamento do sujeito em direção ao corpo do outro: “na ausência de um saber fazer frente ao outro sexo, produz[-se] um despertar traumático para o fato de que não há harmonia sexual entre os humanos” (RAMÍREZ, 2014, p. 11). Diga-se de passagem, essa dimensão de desencontro é muito bem apresentada pelas dinâmicas operantes na relação entre Wendla e Melchior: ela querendo fazer-se amar e ele buscando satisfação para seus impulsos sexuais; ou então, ela atrevendo-se na prática do masoquismo e ele assumindo um papel sádico para, em seguida, escapar chorando cheio de culpa.

Com isso, abre-se espaço para pelo menos duas observações que, sem maiores esforços, permanecem intimamente relacionadas – são elas que atravessam e dão corpo ao impasse vivido pelos adolescentes. Assim, se, por um lado, é preciso que cada sujeito elabore um saber singular sobre como suas satisfações e desejos podem (ou não) contar com os demais, por outro, esse saber também permanece sempre em questão diante da efetividade do desencontro entre os diferentes modos de satisfação. Não estranha, portanto, que os adolescentes da peça – mas não só eles, na verdade – declinem as inúmeras manifestações do “exílio de cada um em seu gozo” (RAMÍREZ, 2014, p. 15). Isto é, se já não lhes cabem os saberes da infância, tampouco lhes parecem suficientes os saberes que os mais velhos pretendem que eles privilegiem. No entanto, mesmo apostando em polêmicas e combinações disruptivas, Wedekind, sua peça e seu homem mascarado talvez tenham formulado uma via alternativa para contornar essa multiplicidade tão grande de sensações angustiantes. Sua potencialidade, como me parece, segue viva, uma vez que em seu centro se inscreve uma aposta na possibilidade de falar justamente daquilo que causa desconforto, mas falar para fazer outra coisa com isso: no caso, arte, coisa para gente arteira.

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Diego Cervelin é psicanalista e participante das atividades da EBP – Seção Sul, doutor em Literatura (UFSC) e graduando do curso de Letras-Italiano (UFSC).

 

Referências

FREUD, Sigmund et al. Séance du 13 de février de 1907. In. Les premiers psychanalystes: minutes de la Société psychanalytique de Vienne (1906–1908). Vol. 1. Paris: Gallimard, 1976, pp. 133–40.

FREUD, Sigmund. Três ensaios sobre a teoria da sexualidade [1905]. In. Obras completas.  Vol. 6 [1901–1905]. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2016, pp. 13–172.

       . A moral sexual “cultural” e o nervosismo moderno [1908]. In:. Obras completas. Vol. 8 [1906–1909]. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2015, pp. 359–89.

       . A cabeça de Medusa  [1922]. In. Obras completas. Vol. 15 [1920–1923]. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, pp. 326–28.

LACAN, Jacques. Prefácio a O despertar da primavera [1974]. In. Outros escritos. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 2003, pp. 557–59.

RAMÍREZ, Mario Elkin. Apresentação do livro ‘Despertar da adolescência. Freud e Lacan leitores de Wedekind’. Opção lacaniana online nova série, ano 5, n. 15, novembro de 2014. Disponível em: <https://is.gd/Q012UE>. Acesso em: 10 maio 2022.

WEDEKIND, Frank. O despertar da primavera. Tradução de Vinicius Marques Pastorelli. São Paulo: Editora Temporal, 2022.