Na consciência da perda
- crítica teatral

Na consciência da perda

artigo por HANSGEORG SCHMIDT-BERGMAN — Em texto originalmente publicado em 2008, no jornal alemão "Die Welt", o pesquisador e professor Hansgeorg Schmidt-Bergmann reflete sobre a obra de Botho Strauss. Crítico ferrenho da classe média e da intelectualidade em geral, colocando em questão todo um modelo de pensamento, a dramaturgia de Strauss suscita discussões acaloradas mundo afora. Ao abordar o conjunto criativo de Strauss, Schmidt-Bergmann apresenta parte de seu universo com uma escrita que, em muito, se assemelha à forma como o dramaturgo compõe seu corpo artístico: em meio a ideias, estímulos e caminhos singulares, que colocam o espectador contemporâneo à prova.

O presente é um mistério. Temos informações privilegiadas sobre uma passagem que não abarcamos com a visão. Compreendemos tudo ao nosso redor com conceitos um tanto antigos, o presente é sempre um incerto plano aberto, mar. Somente o passado pode ser seguido em seus caminhos, rios. 

“O pessimismo de Buckhardt com o olhar voltado ao século XX mostra”, como constata Botho Strauss, “que a visão é um dom especial dos que se voltam ao passado, o que não alcança, via de regra, o adepto do progresso com seus visionismos futuristas”. No livro mais atual de Botho Strauss, a narrativa Die Unbeholfene (Os desajeitados), chamada de “novela da consciência”, lê-se: “Sim, nós somos feitos sobretudo de memórias e em cada uma de nossas manifestações está o chamado de algo parcialmente esquecido.”

Strauss começou como crítico de teatro. As primeiras peças, como a comédia Bekannte Gesichter, gemischte Gefühle (Rostos conhecidos, sentimentos misturados), com estreia em setembro de 1975, no Württembergischen Staatstheater, em Stuttgart, com a direção de Niels-Peter Rudolph, foram tidas como uma sátira libertadora sobre a classe média nacional. O “estranho absurdo” levado aos palcos trouxe à luz conversas cotidianas sem conteúdo e a impossibilidade de olhar para si mesmo através das emoções e da língua. 

Na temporada de 1979/80 foram as “cenas” de Groß und Klein (Grande e pequeno), cujo título remete ao Minima Moralia, de Theodor W. Adorno, que se destacaram como um acontecimento no teatro, tendo estreado em Berlim, com a direção de Peter Stein. Praticamente 370 apresentações e quase 170 mil espectadores nos teatros de língua alemã – com exceção da RDA, onde nenhuma peça do Botho Strauss chegou a ser encenada – aclamada na Broadway na versão americana e em Paris. Dez estações mostram a vida da protagonista como uma miséria social e psíquica. Lotte – a inesquecível Edith Clever na montagem berlinense – não se sente estranha em lugar nenhum, mas é supérflua em todos os lugares. Sua última frase: “Estou por aqui, só isso”, expressa isso bem. Esse “estar por aqui” sem reflexão ou memória é uma sombra do possível. Esta e as peças seguintes, como Kalldewey, farce (Kalldewey, farsa) e Der Park (O parque), que é uma confrontação de “Sonho de uma noite de verão”, de Shakespeare, com a realidade dos anos 1980, parecem ser atemporais, mesmo com todo o vínculo que possuem com sua época – caso, na posteridade, a literatura venha a ser utilizada para uma revisão histórica, essas peças trarão informações.   

“Há emoções que existem somente através de um livro”, isso está na narrativa Die Widmung (A dedicatória). Nos grandes modelos literários encontram-se “achados originais”, entre eles conceitos como “honra” que não encontram mais correspondentes na realidade social, mas sim “em meio aos estímulos, para os quais nos transporta a leitura de Marquesa de O..., de Kleist, de repente, é preenchida a palavra vazia, esquecida junto a toda seriedade social e perigosa.” São somente “restos” de um cânone de valores que no processo de um nivelamento libertário foi sucessivamente enfraquecido, assim como as emoções sacras, que sobreviveram somente na escrita. Esse “resíduo de significados” serve – na língua dos “responsáveis pelo descarte” – para “reciclar”, a “tecnologia de voltar a tratar de um conhecimento simbólico usado” está na mão desmaiada do escritor, daquele, como será chamado mais tarde, “continuador da escrita”. “Poucas pessoas, elas quase não conseguirão sozinhas”. “Lembrar” como consciência de uma perda se constitui em uma das figuras centrais da reflexão estética na obra de Botho Strauss. 

O poema elegíaco “Diese Erinnerung an einem, der nur einen Tag zu Gast war” (Esta lembrança de alguém que foi hóspede somente por um dia) foi lançado em 1985, novamente perturbando a crítica e tornando-se para Botho Strauss a pergunta alemã sobre o tema: “Tanta história para terminar assim./ Sentiríamos: o coração de um Kleist / e a divisão do país.” Dois anos depois da queda do muro, escuta-se em Schlusschor (Coro do fim), em três atos, um eco da corajosa resistência e a fórmula “Nós somos o povo”. O que foi taxado pela crítica, ainda antes da unificação, como anacrônico, de “tom elevado” e politicamente incorreto, se olhado em retrospectiva, aparece como antecipatório. Os “velhos conceitos” parecem remeter com seu simbolismo ao arcaico, mas, ao mesmo tempo, a surpresa e a não compreensão se inscrevem em sua estranheza, e nos deixa atônitos com as catástrofes causadas pelos homens. 

No ensaio “Anschwellender Bockgesang” (O crescente canto do bode), Botho Strauss buscou por modelos de significação que vão além das categorias condicionadas e saturadas e desencadeou um dos debates intelectuais mais intensos dos anos 1990 – uma citação como lembrança: “Nós alertamos de um modo um tanto presunçoso para as ondas nacionalistas nos novos Estados no leste da Europa e na Ásia Central. Não conseguimos entender que alguém no Tajiquistão compreenda ser um dever político preservar sua língua, assim como fazemos com nossa água. Não conseguimos entender que um povo queira afirmar sua lei de costumes a um outro e que, para tanto, esteja disposto ao sacrifício de sangue, consideramos isso, no nosso autocentramento liberal-libertário, errado e reprovável”. Ainda hoje parece evidente no mainstream intelectual que conceitos como “lei de costumes” e “sacrifício de sangue” provocariam o discurso dominante, mas como se pode compreender “assassinato pela honra”, “atentado suicida” e fundamentalismo religioso de outro modo, sem uma referência ao pensamento pré-iluminista pelo menos de modo aproximado?

Só um parêntesis: no ensaio “Acerca da razão por que nos entretêm assuntos trágicos”, de Friedrich Schiller, os conceitos recriminados “lei de costumes” e “autossacrifício”, foram usados para a definição do “trágico”. 

Chama atenção que depois da quebra de tabu intelectual de Anschwellender Bockgesang (O crescente canto do bode) – mais perto da Dialética do esclarecimento, de Adorno e Horkheimer, do que os críticos quiseram admitir – Botho Strauss, o ganhador do prêmio Büchner, voltou a receber uma premiação literária somente no simbólico ano de 2001, o prêmio Lessing, de Hamburgo. Uma década e meia depois do ensaio publicado originalmente no Spiegel, as realidades políticas se deslocaram novamente, o pretenso escândalo mostrou ser, em retrospectiva, um aviso – uma civilização ocidental que se tornou sem ideais, que quase não consegue mais oferecer valores e  senso de comunidade criadores de utopias, se mostra cada vez mais desarmada contra as erupções nos âmbitos marginais da própria sociedade e contra as hostilidades contemporâneas e sua legitimada violência fundamentalista. Uma “lembrança profunda” – a “fantasia do escritor, de Homero a Hölderlin” – que se torna consciente disso, precisa mobilizar intervenções contra uma consciência que se torna cada vez mais unidimensional. Isso implica também numa mudança da forma dramática do “fim do mundo” nos palcos, não mais “de brincadeira, cômico”.

Uma poética do trágico opõe-se a uma ampliação crescente da oferta de violência racional, como anunciado em Anschwellender Bockgesang: “Isto é uma tradução da leitura para a peça”, Botho Strauss explica a sua “peça através dos cantos de retorno ao lar da Odisseia” e nas anotações sobre os “cantos dos heróis”. Em Ítaca, Strauss fala da necessidade de um “recomeço mítico” e do desaparecimento do “invólucro do esquecimento”. A função do teatro para Strauss é esta: um lugar de anamnese cultural e uma instituição corretiva, na qual a linguagem artística é colocada contra os processos comunicativos, nos quais é reproduzido o real degenerado. 

Na entrega do prêmio Büchner, Botho Strauss expôs claramente o conceito dos requisitos poetológicos que levaram aos seus trabalhos nos anos 1990: “Quando arranjos poderosos trazem o novo em excesso, então, eles precisam contar com a resistência, com as influências secretas dos escritores. Anamnese, e nada mais, é a sua arte e dever. Procuram asilo nos lugares, procuram o inviolável.” Em Die Fehler des Kopisten (Os erros do copista), o negócio cultural não reflexivo é privado de seriedade e horizonte intelectual para que ainda possa dispor produtivamente de tradições: “Há uma linha divisória nova, claramente marcada entre o (assim chamado pejorativamente de) “metafísico” e todas as demais alegrias artísticas coloridas de nossos dias. [...] Neste momento, já que a língua está preparada para o incomunicável, para a reinvindicação e a reminiscência, ela esbarrará de imediato na resistência amargurada dos funcionários da comunicação. [...] Mas estou esquecendo que só tenho relação com aparições recentes, que talvez nem considerem nomes como Hamann ou Franz von Baader na literatura alemã. Mas eu sou seu meio, através de mim eles vivem e vivem melhor do que em suspiros de artigos memoriais em dias de nascimento e morte”.

É esta a tradição filosófica e histórico-literária que acompanhou o processo da modernidade desde o Iluminismo, com ceticismo e até repulsa; além do exposto, pode-se depreender muitas outras coisas da obra do “continuador da escrita” Strauss. Um gesto que sempre volta a provocar, porque ele sempre aconselhou a todos os que dão vereditos a fazer uma nova leitura do que foi jogado para escanteio, sem desconhecer que isso possa ter um efeito corretivo. “Não virá uma época melhor. Ela está sempre aí. E pode passar uma vida toda negligenciada e sem ser descoberta.”

Die Fehler des Kopisten (Os erros do copista) dão pelo menos uma ideia de uma “época melhor”, a “obra mais pessoal até aqui”, como classifica Botho Strauss e, ao mesmo tempo, uma passagem para o século 21 com a sua realidade digital “em rede”. Contra a “verdadeira ameaça” se opõe a língua das obras literárias. Na escrita, “o meio do legado, da ausência”, sobrevive a ideia de um Eu que se perde sempre mais – e que precisa manter o espelho diante dos pedaços.  

Pode ser que os escritores se sintam “desajeitados” e “inábeis”, meros “copistas” e “minorias” singulares, mas somente eles são os que sempre protestam “que os modelos do teatro são mais velhos, mais fortes e mais capazes de sobreviver do que tudo aquilo que podemos lhes trazer do presente”. E a obra de Botho Strauss é responsável por isso, sendo hoje parte indiscutível, reconhecida e eminente da história da literatura alemã. 

“Só se escreve a serviço da literatura. Se escreve sob o olhar de tudo o que já foi escrito até então” – uma necessidade estética que, talvez, em comparação com as outras artes, ajude a literatura a assegurar sua sobrevivência.

Hansgeorg Schmidt-Bergmann é autor, professor e pesquisador, especializado em cultura e literatura alemão.
O artigo foi traduzido por Alice do Vale exclusivamente para a Temporal.

No banner: montagem de Trilogia do reencontro, peça de Botho Strauss publicada pela Temporal.