Enfrentamentos de uma arte coletiva durante o isolamento
- crítica teatral

Enfrentamentos de uma arte coletiva durante o isolamento

artigo por EDUARDO DA LUZ MOREIRA — A primeira postagem do mês de setembro de nosso Blog, traz um testemunho dos atores Chico Pelucio, Eduardo Moreira e Inês Peixoto, integrantes do Grupo Galpão, sobre a realidade de um coletivo de teatro em meio à pandemia e ao isolamento social

Ligada à tradição do teatro popular e de rua desde sua origem, a companhia de teatro mineira Grupo Galpão conta com mais de 38 anos de história no cenário teatral brasileiro, e consolidou-se como um dos coletivos que mais circula pelo país. Trabalhando em parceria com companhias e diretores nacionais e internacionais, o Galpão constrói espetáculos que dialogam com o popular e o erudito, a tradição e a contemporaneidade, o teatro de rua e de palco, o universal e o regional.

Em março de 2020, com a confirmação da chegada da pandemia de Covid-19 ao Brasil e o posterior decreto de isolamento social, o cotidiano e a atuação do grupo se transformaram de maneira radical – processo que embora comum a toda população e aos setores da economia, foi mais significativo para o campo cultural, uma vez que houve total paralisação, sem perspectiva de retorno, daquelas atividades que dependem da presença física e coletiva de um público.

Como em toda a sua trajetória, marcada pela aquisição da sede própria e da criação de um centro de cultura, pesquisa, memória e formação teatral – o Galpão Cine Horto –, entre outros acontecimentos, o grupo remodelou seus projetos, adaptou o que era possível, e criou, a partir da migração para o ambiente virtual, novos modos de diálogo com seu público. Foi nesse contexto que nasceu “Histórias de confinamento”, relatos reais de experiências durante a pandemia interpretados pelos atores e atrizes do Grupo Galpão, apresentados nas redes sociais da companhia. Interessada pelo projeto, a Temporal convidou o grupo a depor suas próprias histórias, numa tentativa de transpor ao registro textual o que vem se fazendo nessa nova cena on-line, mediada por telas e por um breve tempo de atenção e espetáculo.

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Por Eduardo da Luz Moreira

Depois de mais de três meses sem entrar na sede do Grupo Galpão, fui até lá buscar um acordeão para atualizar a execução de algumas músicas. Chegando lá, fiquei pensando: em mais de 38 anos de atuação no grupo, nunca havia ficado tanto tempo afastado daquele espaço. Nunca tinha permanecido tanto tempo sem subir em um palco, sem montar um espetáculo na rua, entrar numa sala para criar e improvisar ou encontrar os colegas de profissão e de ofício como nos últimos meses – a não ser por aqueles quadradinhos gaguejantes e um tanto lastimáveis de nossos celulares e notebooks. 

A desolação de nossa sede, no momento de minha visita, era um retrato mais do que fiel desses tempos – na porta, quase em frente à entrada, fezes humanas deixadas por algum provável morador de rua, desses tantos que lotam as ruas das grandes cidades e que são a tônica da paisagem urbana, com ainda mais intensidade nesses tempos de pandemia e de isolamento social. Lá dentro, a poeira tomava conta dos objetos, as cadeiras ainda estavam dispostas em círculo, tal qual as deixamos em nosso último ensaio presencial no dia 17 de março. Foi como se os fantasmas do teatro ainda estivessem presentes ali, esgueirando-se na esperança de ver ressurgir alguma cena naquele espaço ou ouvir uma nova canção. Como se o silêncio ainda pudesse ser quebrado num passe de mágica e que tudo, afinal, não passasse de um pesadelo ou de uma miragem, e que o espírito de festa e de reunião do teatro pudessem voltar a colorir o mundo.

Parece que embarcamos num enorme e desolador silêncio. E, ainda assim, tentamos manter, de alguma forma, a chama acesa. Produzimos vídeos, contamos casos da história do Grupo, fazemos campanha para que as pessoas nos enviem histórias, reais ou fictícias, sobre o período da pandemia, além de entrevistas, debates, “lives”. Enfim, contamos e inventamos histórias, reafirmando que tudo isso vai passar. 

Como a sala de ensaio do Galpão, nossas vidas ficaram murchas, silenciosas, empoeiradas. Elas ficaram como as ruas da cidade, que estão tristes, submersas, entregues ao descaso, ao desleixo, à absoluta falta de convívio. Assim como a sala de teatro fechada e muda, desprovida de sua intensa pulsação de vida e da troca de energias.

Perdemos a estreia de um novo espetáculo, Quer ver, escuta, que aconteceria durante o fim de março e início de abril, no Festival de Teatro de Curitiba, e de toda uma programação que passaria por temporadas extensas entre São Paulo e Belo Horizonte. Mas, mais do que isso, perdemos a continuidade que já contava com 38 anos ininterruptos de muitos encontros, festas, celebrações, de muita troca, entrega e doação, sempre em contato íntimo e visceral com nosso enorme público, hoje espalhado pelos quatro cantos do Brasil. 

E, o mais apavorante de tudo: o temor de que isso tudo demore muito mais do que podemos imaginar, e de que nós, como coletivo de teatro, percamos nossa identidade e razão de ser. 

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 Novas companhias, por Inês Peixoto

O que pensar de um coletivo em tempos de isolamento? Nada mais paradoxal. Fomos pegos de surpresa, acostumados a compartilhar espaços, pensamentos, decisões, afetos, brigas, tudo, tudo, olhos nos olhos, sentindo a presença e o cheiro de perfume ou de suor. E agora? Para onde vamos a partir daqui, sabendo que, de onde viemos, a presença e o encontro são premissas para existir e criar?

Inesperadamente, duas palavras afetaram tremendamente o nosso cotidiano: Zoom e live.

Nunca tinha ouvido falar do aplicativo Zoom. E agora ele se tornou um novo integrante do Galpão, possibilitando encontros, continuidades e tentativas de criação, espaço fundamental de recepção de nossas intermináveis reuniões. Enfim, o Zoom nos possibilitou até realizar um filme experimental chamado Éramos em Bando.[1] Tentativa de continuar um processo de criação, de continuar lutando para não ficar submerso. Deu para sentir? Éramos e estamos tentando continuar a ser. De encontros no Zoom até as participações incessantes nas lives, seguimos.

As lives, por sua vez, possibilitam uma ponte de conversa entre artistas e interessados em arte pelo Brasil afora. Bonito isso. Daqui de Belo Horizonte, temos conversado com artistas de várias cidades do país, muitas vezes com coletivos do interior, num movimento de encontros com novas pessoas e novas cidades. Nossa vida era viajar por esse Brasil, encontrando o público nos espetáculos e também em oficinas e bate-papos, realizando trocas, entendimento dos movimentos culturais e artísticos de cada cidade, olhos nos olhos, ao vivo e a cores.

Agora, temos a câmera como uma mediadora, seja do celular, do computador ou ainda da boa e velha câmera de filmar. Às vezes, penso em Os Jetsons, uma série de animação dos anos 1960, que adorava quando era criança. Achava incrível quando eles pegavam uns aparelhos e viam a imagem de seu interlocutor do outro lado da cidade. É isso. Agora, todas essas telas se transformaram em nossa realidade e tem nos salvado. Uma nova maneira de interação, de existir coletivamente. Ainda assim, quero muito que isso tudo passe e que eu possa olhar nos olhos e sentir o cheiro e a respiração dos outros. Mas sei, no entanto, que o Zoom e as lives serão novos parceiros, que vieram para ficar e resolver “possíveis impossibilidades do real”. 

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Para Flávio Migliaccio[2], por Chico Pelúcio

Há mais de meses, a angústia da espera de uma resposta, contando os dias sem ter certeza se dois mais dois são?... Entrar em um túnel sem saber sua extensão, tão pouco o que virá depois. Esperar a enchente, passar lentamente para ver o que restou sobre as águas. Aguardar o efeito do último remédio na esperança de se salvar ou tatear os caminhos na escuridão. Tudo, tudo sobre o manto do tempo; tempo que se não passa, não revela, tem o tempo que deslizar. Esse implacável impõe seu “tic tac” que não apressa e nem retarda o seu passo. Ele não é um metrônomo: é a vida que segue independente do sol ou da chuva. Altivo, ora silencioso, ora ruidoso, ignora saudade, fome, urgências de amor e de morte. Todos nós sobre seu voo natural de existir e de reger os dias e as noites. Angústia da espera consome nossa mente mais do que o coronavírus ao nosso pulmão. É avassaladora a angústia da incerteza para quem não se entrega ao tempo, para quem sozinho tenta arrastar o continente. A urgência de resolver não dialoga com a realidade pois esta não depende de uma só pessoa, mas de uma convivência coletiva. Somos todos em um, e um em todos, sem excluir a natureza, as árvores, os animais, as águas e o ar que leva sua alma ao som dos pássaros ou aos clarins dos anjos.

Ora, isso não se parece com os primeiros dias de um processo de criação teatral, quando não sabemos o que virá a seguir? Tudo está a ser revelado, o caminhar de acertos e erros, de revelações e escuridões, de perguntas sem respostas, de gritos sem ecos e ecos confusos. Ali, aprendendo que somos muitos e somente de todos virá o desvelamento. O sozinho não existe na criação teatral, e achar frestas de luz depende do esforço de todos. Não há tempo para tréguas: é agir, errar, tentar de novo, desapegar, mudar, abrir o coração, precisamos trabalhar arduamente para vencer a incerteza e, aos poucos, achar a melhor tradução da cena do personagem. É acreditar que é possível, é encontrar caminhos em pequenos gestos, em cada palavra, em uma simples pausa e em todos os pulsares do seu corpo. Sozinhos nós não existimos. Assim, o momento da criação é uma revelação de uma nova vida a cada dia, traduzir algo que ela nos esconde. É uma construção diária de detalhes, de escuta, de observação, de entrega, de generosidade, de risco, mas, acima de tudo, de humanidade. Sinto-me assim agora, esperando o que será de nós, o que será do teatro, o que será do Brasil e do mundo. Mas como artista, sei que é preciso abrir os sentidos para construir dias melhores. O “tic tac” do tempo perturba minha alma apressada, mas não há atalhos neste caso. Precisamos vivenciar o isolamento todos os dias, a escuridão, o egoísmo de alguns, a vontade de um abraço, a solidão; precisamos reconhecer o outro e a natureza, praticar a empatia!

Nesses desvarios, tento me libertar do que me prendia, do que me amarrava, para me agarrar em asas que me fazem voar. Quando tudo passar, voltar ao normal? Não! Jamais! Não quero, não posso, não tenho mais tempo a perder, quero seguir a utopia, inventar o desconhecido que me faça ser inteiro e parte do todo, sem hipocrisia, sem omissão.

Uma hora a cena se apresenta, a luz se acende, o túnel se acaba, e aí poderemos enxugar o suor, aquietar a mente, abraçar alguém, e, quem sabe, “dormir, dormir, e talvez sonhar”?[3]

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Natural do Rio de Janeiro, Eduardo da Luz Moreira deu seus primeiros passos no teatro montando espetáculos no movimento estudantil da Faculdade de Filosofia da UFMG, e junto a grupos musicais como o CURARE e o Mambembe, ligados à Fundação de Educação Artística, no final da década de 1970 e início dos 1980. Depois de uma série de montagens no teatro profissional de Belo Horizonte, fundou em 1982 o Grupo Galpão, do qual é diretor artístico. Participou de todas as 24 montagens do grupo ao longo de seus 38 anos de existência, tendo recebido inúmeros prêmios por sua atuação.

Inês Peixoto é atriz, diretora, dramaturga, nasceu em Belo Horizonte em 1960. Ingressou no Teatro Universitário (TU) em 1979, e migrou para o Centro de Formação Artística da Fundação Clóvis Salgado (CEFAR), em 1981, onde se profissionalizou. É bacharelanda em cinema e audiovisual pelo Centro Universitário UNA. Integrante do Grupo Galpão,  participou de trabalhos no teatro, cinema e televisão com diretores como Gabriel Villela, Cacá Carvalho, Paulo José, Luiz Fernando Carvalho, Ruy Guerra, Fábio Meira, Jurij Alchitz, Rogério Gomes, José Luiz Villamarin, Paulo de Moraes, entre outros. Inês já foi agraciada com doze prêmios por sua atuação no teatro e outros três por sua atuação no cinema.

Chico Pelúcio é ator, diretor de teatro, gestor cultural e integrante do Grupo Galpão desde 1983, no qual como é criador e coordenador-geral do Centro Cultural Galpão Cine Horto desde 1998. Chico foi presidente da Fundação Clovis Salgado/Palácio das Artes entre 2005 e 2006. É autor, em parceria com Romulo Avelar, do livro Do Grupo Galpão ao Galpão Cine Horto, uma experiência de Gestão Cultural (Belo Horizonte: Edições CPTM, 2014).

Formado por doze atores, o Grupo Galpão, sediado na cidade de Belo Horizonte, Minas Gerais, é uma das companhias mais importantes do cenário teatral brasileiro. Criado em 1982, o grupo alia rigor, pesquisa e experimentação da linguagem na montagem de peças que possuem grande poder de comunicação com o público. Ao longo de seus mais de trinta anos, desenvolveu parcerias com diferentes diretores convidados – como Fernando Linares, Paulinho Polika, Eid Ribeiro, Gabriel Villela, Cacá Carvalho, Paulo José, Paulo de Moraes, Yara de Novaes, Jurij Alschitz e Marcio Abreu –, além de ter entre seus próprios diretores, como é o caso de Eduardo Moreira, Chico Pelúcio, Júlio Maciel, Lydia Del Picchia e Simone.

O Grupo Galpão já percorreu todo o território brasileiro com suas encenações, além de ter participado de diversos festivais nacionais e em países do continente americano e europeu. Sem fórmulas ou métodos definidos, o Galpão sempre pautou sua prática pelo teatro de grupo, que não apenas monta espetáculos, mas que se propõe a uma permanente reflexão sobre a ética do ator e do teatro, inseridos em um amplo universo social e cultural.

 

[1] Éramos em Bando, 2020, filme-ensaio com direção de Marcelo Castro, Pablo Lobato e Vinícius Souza.

[2] Em 4 de maio de 2020, a triste notícia da perda do ator, diretor e roteirista Flávio Migliaccio, de 85 anos, abalou a comunidade brasileira, em especial o campo da cultura. Com uma trajetória no teatro que teve início aos 14 anos, Migliaccio teve passagem por companhias de teatro amadoras até chegar ao histórico Teatro de Arena, onde participou de peças emblemáticas do início dos anos 1960, como Chapetuba Futebol Clube, de Oduvaldo Vianna Filho, e Revolução na América do Sul, de Augusto Boal. A partir dos anos 1970, o ator passou a integrar grandes produções no cinema e na televisão, atividade que manteve até o fim de sua vida.

[3] Referência ao texto da peça Hamlet, de Shakespeare.

 

No banner: elenco em espetáculo Till, a saga de um herói torto (2009). Foto de Guto Muniz.