Duas cenas de "O pão e a pedra", de Sérgio de Carvalho
- crítica teatral

Duas cenas de "O pão e a pedra", de Sérgio de Carvalho

A Companhia do Latão comemora 25 anos de trajetória em 2022. Para celebrar a obra deste coletivo teatral, em que resistência cultural e existência política se mesclam, publicamos abaixo um excerto da peça "O pão e a pedra". O espetáculo, assinado por Sérgio de Carvalho, virou livro e integra o catálogo de dramaturgia brasileira da Temporal. A obra se passa em 1978, no contexto das greves do ABC Paulista, que moldaram o sindicalismo no Brasil e ajudaram a enfraquecer a ditadura civil-militar. Vida longa à Companhia do Latão e nossos agradecimentos às contribuições que o grupo presta, desde sua fundação, ao teatro nacional. Boa leitura a todos e todas!

Cena 20: Compasso de espera

 

Noite de folga de Joana com seu filho. No outro plano, em ação simultânea, relato de Luísa a seu grupo político.

 

Presente do filho

 

Joana entra em sua casa, lentamente. Entoa uma canção tradicional de melodia doce e melancólica. Traz o aparelho de televisão.

 

Joana  (Canta)

Oi bate marcha,

bate o tambor

o meu amor é quem me faz

eu ir à guerra.

Subi a serra de avião

meu coração é um guerreiro

treme terra.

 

Isaías (Está deitado de bruços no chão da sala. Desenha. Ao ver o aparelho, levanta-se

empolgado. Abraça e beija a mãe) Uma televisão! (Ela põe o aparelho no centro da

sala e liga. Isaías se senta para assistir. Ela o acompanha, mexendo vez ou outra na antena.

A música que sai do aparelho é a abertura da série estadunidense O homem de seis milhões

de dólares) Mãe, psiu, silêncio. Olha, ele está correndo... É ele. Um homem semimorto.

 

Joana e Isaías  (Recitam em coro, rindo, o texto do narrador da série) “Senhores, nós temos a tecnologia, nós temos a capacidade técnica!”

 

Isaías  (Abraça-a) Obrigado, pai!

 

(Ele se deita no colo dela. Assistem)

 

Tempo roubado

 

Relato de Luísa a seu grupo.[i]

 

Luísa  Informe de uma militante integrada à linha de montagem: a volta ao trabalho, após a suspensão dos quinze dias de greve, é a volta ao tempo da fábrica. Registro aqui aos companheiros a dificuldade da tarefa: conviver com a realidade fundamental do trabalho proletário, o tempo roubado. Percebo que as palavras conhecidas, “exploração”, “alienação” e mesmo “coisificação” não dão conta da questão central: o ritmo imposto, a vida saqueada. Acredito ser essa a conquista maior dos quinze dias, perdoem-me se pareço psicologista ou pequeno-burguesa, mas a lição maior da greve, interrompida pela trégua dos 45 dias, é a do direito à responsabilidade sobre o tempo.

 

Cena 21: Quintal de Arantes

 

Quintal de uma casa operária. Arantes, num tanque, lava roupa. Fúria Santa está próximo, no chão de terra, com um rádio portátil. Escuta a canção “Sentado à beira do caminho”, de Roberto e Erasmo Carlos.

 

Arantes  Quando eu ouço uma música como essa, eu penso: que maravilha! Eu gostaria de ter tempo para escutar isso todos os dias. Talvez seja ingênuo da minha parte. Eu penso: quantas coisas maravilhosas, sobre-humanas, os seres humanos podem fazer. Me dá vontade de dizer pequenas coisas estúpidas e bonitas. E acariciar a cabeça das pessoas capazes de criar tanta beleza no meio desse inferno, desse mundo injusto. Mas não é o momento para acariciar a cabeça de ninguém. Você poderia ter sua mão mordida, decepada. Nós temos que bater na cabeça deles sem misericórdia. Porque nossa tarefa é muito difícil. É às vezes infernal.[ii]

 

(Ele tira a própria camiseta e a lava também. Permanece sem camisa. Fúria Santa pensa na letra da canção)

 

Fúria Santa Você lembra daquela galega que me puxou para dançar? Lembra? Ela tinha “conhecimento”. (Indica, num gesto, o próprio ouvido) Falou uma passagem linda da Bíblia. A gente nem precisou dizer muita coisa... Só no gesto. (Imagina o encontro com Joana: faz o gesto de segurá-la pela cintura) Sabe quando a gente dá uma apertadinha assim? Ela deixou. Colou, assim, sabe? (Mimetiza a dança. Embala-se como se estivesse com uma acompanhante imaginária. Volta a cantar a letra do rádio) “Preciso acabar logo com isto. Preciso lembrar que eu existo, que eu existo.”

 

(Arantes vê Fúria Santa de olhos fechados. Pega água do tanque e respinga o rosto do amigo, que toma um susto)

 

Fúria Santa Ô, Arantes, deixa eu sonhar em paz.

 

(Fúria Santa vai até o tanque e enche as mãos de água. Molham-se como crianças. São interrompidos pelo som de palmas e pela voz de Irene. Ela entra pela cozinha acompanhada de Míriam, Luísa e um rapaz elegante. É Pedro, um estudante universitário intelectualizado. Veste um paletó cuidadosamente descuidado)

 

Irene  (Anuncia) Seu Arantes! Chegamos!

 

(Arantes pega um pano para se enxugar. Luísa se adianta e o cumprimenta)

 

Luísa  A gente chegou mais cedo, podemos conversar agora?

 

Arantes  Claro, se vocês não se importarem de me ver assim.

 

Luísa  (Apresenta Pedro) Esse é meu companheiro, o Pedro.

 

(Todos se cumprimentam. Fúria Santa repara nas roupas do rapaz. O rádio segue tocando a canção de Roberto e Erasmo Carlos)

 

Arantes  Fiquem à vontade, a casa está um pouco desajeitada.

 

Míriam  Quintalzão, hein Arantes. (Avança para observar o espaço e olha embaixo do tanque) Tem até sapólio!

 

Pedro  (Ansioso para dar início à conversa, se dirige a Arantes) Me disseram que o senhor é da oposição...

 

Arantes  Faz tempo...

 

Pedro  A gente soube que o senhor está descontente com a atual diretoria do sindicato por negociar com o governo. Por se submeter à Fiesp, por engolir essa suspensão. (Incomodado com o som do rádio, Pedro desliga o aparelho que estava no chão. Fúria Santa o encara) Eu também penso que a diretoria manipulou esse acordo. Não chego a dizer que o Lula é um enviado do Golbery. Mas o nosso grupo julga que é o momento de radicalizar.

 

Arantes  (Tenta mudar o rumo da conversa) Não foi acordo, foi trégua...

 

Pedro  (Sem escutar) Pois então... É a hora de aproveitarmos o descontentamento das massas e ativarmos a transformação revolucionária, desdobrar as contradições do processo... (A Míriam) Será que as meninas poderiam passar um café para a gente?

 

(Míriam, sem hesitar, se dirige à cozinha. Luísa a interrompe, descontente com o comportamento do namorado)

 

Luísa  Deixa que eu faço. A cozinha é ali, né, Arantes? Você se importa? (Olha para o namorado e vai)

 

Míriam  Deixa que eu te ajudo.

 

Irene  Se tiver bolacha champanhe, traz também.

 

(Míriam se vira e infla as bochechas, sugerindo que Irene vai engordar na gravidez. Sai)

 

Arantes  (Para as moças que estão na cozinha) Acabei de passar um e pôr na térmica. O açúcar está no pote vermelho.

 

Pedro  (Anima-se com seu tema) Agora todo o ABC está vendo que essa política sindical é de conciliação. Eles só querem manter a própria estrutura de poder. A verdade é que a classe trabalhadora perdeu o respeito pelo sindicalismo.

 

Fúria Santa  Dá licença! (Ergue o rádio do chão, deixa claro ao rapaz que o aparelho lhe pertence. Num gesto de cabeça, despede-se de Arantes. Demonstra que não tem interesse na conversa) Eu vou ouvir a rádio América. As “dez mais”.

 

(Sai com um meio sorriso nos lábios. Luísa volta com o café, ajudada por Míriam. Ela percebe que o encontro não corre como planejado)

 

Arantes  (A Pedro) Desculpe, mas ninguém perdeu o respeito, não.

 

Luísa  O quê?

 

Arantes  Pelo sindicalismo. A gente só queria manter a pressão. De cabeça erguida. Está certo que ninguém discursa tão bem quanto o homem. E ele levou. Mas você acha que é fácil juntar setenta mil pessoas numa assembleia?

 

Pedro  (Decepciona-se) Eu pensei que o senhor fosse da oposição.

 

Arantes  Toma seu café, rapaz. Faz como a Luísa e vira outra coisa. O contrário de nós não é o sindicato. Inimigo é quem me obriga a empilhar pedra e não me deixa ouvir música.

 

Luísa  (A Pedro) Acho que ficou tarde.

 

Arantes  Eu não preciso de mais crença. Preciso viver bem.

 

*

 

[i] No espetáculo da Companhia do Latão, esse relato era feito na semiescuridão, rompida por focos de lanternas. O movimento coreográfico das luzes indicava a passagem do tempo, como numa imagem “em negativo” do ciclo de um relógio de sol.

[ii] A fala de Arantes alude ao texto “V.I. Lênin”, de Maksim Górki, enviado em uma carta do autor para M. F. Andreevoi em 4 de julho de 1924, posteriormente publicada na revista Ruskii Sovremennik no mesmo ano.

Fonte: Sérgio de Carvalho, O pão e a pedra. São Paulo: Editora Temporal, 2019, pp. 136-144.