De um Brasil em crise, teatro para sentipensar: "Lugar nenhum"
- crítica teatral

De um Brasil em crise, teatro para sentipensar: "Lugar nenhum"

artigo por VIVIAN MARTÍNEZ TABARES — Em artigo para a revista cubana "La Jiribilla", a escritora, professora e crítica Vivian Martínez Tabares destaca a consistência artística e a atualidade do exercício teatral que se constrói na peça “Lugar nenhum”, de Sérgio de Carvalho, à luz da crise do investimento público no setor artístico brasileiro, aprofundada pela pandemia da Covid-19

Se nesses dias alguém escreve sobre teatro latino-americano, não pode se esquivar da complexa situação da cena independente, para além dos riscos relacionados à epidemia. Governos neoliberais como o do Chile, Equador, Brasil, Colômbia, Peru e Uruguai, e o interino que se instalou na Bolívia, não garantem o menor apoio para o setor artístico, no interior do qual o teatro costuma estar entre os mais deprimidos economicamente, e, já no fim do segundo mês de isolamento, uma crise real deixa de ser ameaça para se tornar fome e desamparo para milhares de criadores.

As salas fechadas impedem qualquer empreendimento, e atores, diretores, técnicos, funcionários e docentes não veem entrar nenhum dinheiro. Já há Companhias que tiveram que abandonar suas sedes, logradas com suor e mantidas com duro esforço durante anos, muitas das quais eram verdadeiras referências, e muitos grupos correm o risco de desaparecer.

A Federação Uruguaia de Teatro Independente (futi) com o apoio da Sociedade Uruguaia de Atores, na defesa de um bastião cultural do país como foi o teatro independente, reivindicam do Estado os fundos de subsídio contidos na lei orçamentária e o impulso à Lei Nacional do Teatro Independente. Na Colômbia, onde a prática de pendurar panos vermelhos nas portas e janelas é um pedido de ajuda que se traduz como “estamos com fome”, muitos atores estão a ponto de pendurar os seus, conforme publicou em seu mural do Facebook Patricia Ariza, presidente da Corporação Colombiana de Teatro. No Brasil, as políticas do “louco do hemisfério sul” – como Chomsky chamou Bolsonaro –, que afetaram profundamente o social desde antes da epidemia e que não foram capazes de conter seu crescimento – até hoje 2.934 mortos[1] – impactam severamente a cultura e o teatro.

Um grupo de referência de São Paulo, como a Companhia do Latão, liderada por Sérgio de Carvalho, recentemente se viu obrigado a devolver seu estúdio – alugado desde 2007 no bairro de Vila Madalena – por falta de recursos, e a realocar um valioso acervo relacionado a montagens, oficinas, leituras cênicas, publicações e outras experimentações. Fundado em 1997 e dedicado à pesquisa de orientação brechtiana e à criação de uma dramaturgia que encare os problemas da sociedade brasileira, o Latão encerrou suas atividades artísticas no estúdio com uma apresentação de Lugar nenhum, extraordinário espetáculo inspirado em Tchékhov, que veremos em Cuba durante a próxima edição da Temporada de Teatro Latinoamericano y Caribeño Mayo Teatral, que precisou ser adiada para o momento em que tivermos conseguido dissipar os germens e os efeitos da Covid-19.

Em busca de um lugar teatral, social e pessoal

Sérgio de Carvalho iniciou a escrita de Lugar nenhum com o influxo cantarolante e com o espírito da canção “Abundantemente morte”, popularizada por Luiz Melodia, e na encenação, estreada pela Companhia do Latão em junho de 2018, permanecem vestígios [dessa música], cantada por seus protagonistas com o refrão que repete que ninguém morreu. A intensa e nada trivial brasilidade da montagem vai muito além, já que o autor e diretor, com a participação de uma excelente equipe de atores, aproveita de Tchékhov o realismo cheio de poesia e a sua maneira peculiar de trabalhar a ação dramática de modo indireto, e de sublinhar o valor dos silêncios e a força do subtexto. Fragmentos e reminiscências dos caracteres recriados de Tio VâniaA gaivotaAs três irmãs e O jardim das cerejeiras, somados às reflexões dos diários do grande mestre do teatro realista, lhe servem para retratar em seres de carne e osso a indiferença ou a incapacidade de um setor da elite intelectual do Brasil para reagir diante da realidade atual, como manifestação comportamental de um vazio ideológico, o que de alguma maneira tenta, senão explicar, provocar uma reflexão sobre o processo político e social do pais até este mesmo presente.

A trama transcorre de maneira aparentemente fluida e agradável, embora movida por diversas contradições, em meio a um contexto familiar economicamente bem situado em que o cultivo ao espírito se dá em diversos graus. Em uma velha fazenda paradisíaca dos arredores de Paraty, perto da praia, uma família de artistas se reúne para comemorar o aniversário de 22 anos de um filho de pais separados. O progenitor é um cineasta decadente, que evoca o passado político dos anos 1970 e 1980 e superestima seu papel naquele contexto; a mãe é uma atriz de sucesso durante a temporada de uma peça de Ibsen que a deixou em crise existencial e profissional. Um amigo próximo de ambos, músico e preso durante a ditadura, vive na fazenda graças à generosidade da família. Um jornalista liberal está tendo um caso com a atriz, e o cineasta anda com uma jovem aspirante a intelectual, ambos negros. Aparece também uma caseira camponesa que renega sua origem tupi e uma indígena nômade a cujo filho deram sumiço. A suposta festa, ao juntá-los num espaço íntimo, que compreende a casa e seu entorno natural, faz estourar contradições e mundos desencontrados, estragos sentimentais que revelam certo não pertencimento, e, em última instância, o descompromisso de todos com todos e com tudo.

Afloram passagens da história nacional, convenientemente ligadas a personagens presentes ou mencionados pela família, e citações musicais e poéticas de diversos autores brasileiros concedem à trama novos impulsos problemáticos que o texto assimila organicamente, sempre a partir de uma cuidadosa construção literária e teatral. Além disso, há um jogo sutil entre planos temporais e conceituais, que evocam, por um lado, momentos da ditadura militar como um passado conectado com o presente de fora da sala; por outro, a própria natureza do teatro, indicada no tema e posta em xeque em seu viés convencional afeito à representação, especialmente quando o pessoal e o psicológico são transcendidos por sua ressonância social e o melancólico se irmana ao político.

O cenário soluciona com um prodigioso senso de síntese cada uma das passagens, desde as mais íntimas até as mais coletivas. Basta uma plataforma quadrada com dois degraus na frente, fechada ao fundo por um painel em que se projeta uma floresta radiante, dois bancos com múltiplas funções, que servem para se sentar ou para navegar, e, à direita, ao fundo, alguns instrumentos que permitem que dois dos personagens acompanhem a ação com música ao vivo. E a iluminação plenamente expressiva do diretor.

Sérgio de Carvalho sabe arrancar faíscas da aparente inação e mobilizar uma grande diversidade de pensamentos relacionados às tensões íntimas e coletivas, raciais e de classe. Assim, a atmosfera cênica não cessa de transmitir sensações e ideias, de criar situações conflitivas, nem de fazer nossa imaginação voar, ao mesmo tempo que é capaz de despertar emoções complexas. Uma enorme responsabilidade pelo estado que Lugar nenhum nos provoca cabe a seus brilhantes atores: Helena Albergaria e Ney Piacentini nos papéis principais, seguidos por Érika Rocha, Beatriz Bittencourt, João Filho e Ricardo Teodoro, e aqueles que, junto com seus papéis, executam a parte musical: Cau Karam e Nina Hotimski.

Cativante, belo e arrepiante é o Lugar nenhum compartilhado pela Companhia do Latão, pelo que desperta em cada um de seus espectadores, brasileiros ou estrangeiros – como pude comprovar quando a vi acompanhada por outros quatro colegas do teatro cubano –, no que concerne aos vínculos entre indivíduo, seu entorno, sua história e seu modo de agir na vida. Uma reflexão que sobreviverá a esses tempos de pandemia.

[1] Este artigo foi publicado no final de abril. Segundo dados oficiais do Ministério da Saúde, atualizados às 19 horas de ontem (13.05.2020), o Brasil contabiliza 13.149 mortes em decorrência da Covid-19. Disponível em: < https://covid.saude.gov.br/>.

Vivian Martínez Tabares é crítica e pesquisadora teatral e editora. É professora titular do Instituto Superior de Arte de Havana, instituição onde obteve sua licenciatura em Artes Cênicas, com especialidade em Teatralogia, e doutorou-se em Ciências da Arte. Desde o ano 2000, comanda a revista especializada em teatro latino-americano Conjunto, da Casa das Américas, onde também é organizadora e curadora da Temporada de Teatro Latino-americano e Caribenho Maio Teatral, a partir de sua Direção de Teatro. Vivian Martínez foi secretária-geral do Centro Cubano da Associação Internacional de Críticos de Teatro (AICT), e segue integrando a Seção do Caribe dessa organização.   

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Texto extraído de La Jiribilla, Havana, Cuba, ano 18, n. 870, 20 de abril-20 de maio de 2020. Tradução de Philippe Curimbaba Freitas. Disponível em: lajiribilla.cu

No banner Lugar nenhum (2018) / Cena 3: "Mar salgado". À frente, Érika Rocha como Ivone. Ao fundo, sentados, Cau Karam como Pio, João Filho como Antonio e Nina Hotimsky como Hannah. De pé, Beatriz Bittencourt como Maria / Foto de Sérgio de Carvalho