"Corpo a corpo", Vianinha e Vivacqua: a resistência é uma janela
- crítica teatral

"Corpo a corpo", Vianinha e Vivacqua: a resistência é uma janela

artigo escrito por LUIZ ANTONIO RIBEIRO | Em homenagem aos 49 anos desde a morte de Oduvaldo Vianna Filho, o doutor em Memória Social Luiz Antonio Ribeiro escreve sobre a peça "Corpo a corpo", publicada pela Temporal em 2020. Em sua resenha, o pesquisador aborda a resistência vivenciada pelo personagem Vivacqua, um aspecto típico da dramaturgia de Vianinha

Ouvidos! Orelhas! Vocês não passam de montanhas de orelhas, depósitos de ouvidos! (Corpo a corpo, p. 37)

“A vida é uma maratona em que todo mundo perde”. Optei por começar com essa frase porque quis logo nas primeiras linhas do meu texto apresentar um álibi, uma desculpa, um perdão, um ato de misericórdia a Vivacqua, herói-vilão de Corpo a corpo, de Oduvaldo Vianna Filho, o Vianinha, publicado em uma edição cuidadosa e atenta da Temporal. E começo assim porque percebo a dificuldade humana de se compadecer daqueles que sofrem quando não deveriam, daqueles que se destroem quando têm tudo para construir, daqueles que se lançam aos escombros quando receberam as ferramentas da sobrevivência.

No fundo, tento traduzir em textos e experiências de vida uma ética que vem também de Vianinha: a ética de sempre sentar ao lado de quem sofre, dos oprimidos e massacrados, ainda que classes estejam embaralhadas, ainda que o sofrimento esteja difuso, ainda que o sujeito não mereça. Compadecer-se não significa perdoar nem isentar, mas estar junto. E me compadeço, ainda, primeiro nessa esfera individual, para poder abandoná-la em seguida e mergulhar no universo complexo de composição que o texto dramatúrgico Corpo a corpo coloca diante de quem o lê.

Vamos então debulhar o texto. O personagem Vivacqua, sociólogo e publicitário, vive uma espécie de dia de fúria em que resolve reparar os danos do mundo. Mergulhado no álcool e na cocaína, duas substâncias que inspiram coragem, trata de compor uma espécie de reparação da própria história, trazendo ao discurso aquilo que foi silenciado, apontando o dedo para ex-amantes, para a atual esposa, um chefe do trabalho, os vizinhos de prédio, pessoas anônimas, enfim, quem ele conseguir atingir enquanto está trancado em seu apartamento sóbrio. Em uma espécie de cornucópia de suicídio social, o que vemos no palco é um sujeito que, com um gesto de autoflagelação, busca se purgar de todos os vícios, todos os erros e todas as vezes em que precisou se vender matando também a si próprio, o seu ser social, profissional, subjetivo. É quase um ato santificador, uma penitência diante do mundo digna de personagens que levam isso até o fim como o jovem Hazel Motes, de Flanery O’Connor em Sangue sábio.

A perspicácia de Vianinha, porém, está em colocar esse sujeito diante de um público que só consegue vê-lo num processo de duplo, de espelhamento, de multiplicação do efeito Vivacqua em quem o lê. Logo de cara, achamos o sujeito patético e desmedido, mas nos vemos de tal forma implicados em sua crise (“piti” seria a palavra mais adequada) que a nossa defesa inicial é dar um passo para trás. O patético dele ativa nosso modo conservador, pois vemos como tudo aquilo é desnecessário e prejudicial. Uma cena que poderia ter sido evitada sem o álcool e sem o uso de drogas.

O resultado disso, no entanto, é o inverso: Vianinha consegue dobrar a aposta porque quanto mais conservadores ficamos, quanto mais tentamos impedir Vivacqua de passar por essa noite em que ele luta corpo a corpo consigo mesmo e com o resto do mundo, mais Vivacqua’s todos nós seremos. Escapar dele é, de novo, repeti-lo. Assim, Vianinha joga diante de nós a bomba final quando cita o filme que seu personagem gostaria de gravar e nunca pode colocar em prática porque “ninguém quer financiar”:

“não é filme de cebola, não, é sobre vocês, um filme sobre vocês que vocês vão assistir e vão se meter embaixo das cadeiras de nojo, de vergonha, vergonha de serem assim sem sobrancelhas cor de abóbora, tão desprevenidos do mundo! Fazendo força para não pensar mais, não é?” (p. 38)

Se o teatro é um espaço largamente burguês onde quem faz e quem assiste são parte de uma mesma classe burguesa, a única forma de escapar disso é escrevendo sobre aquilo que a burguesia mais teme: perder o respeito diante de si própria, isto é, entre seus pares. Tanto que, pensando em termos contemporâneos, o medo do cancelamento é um lastro estritamente burguês, pobres não veem as glórias de não serem cancelados, pois já são cancelados de antemão, enquanto ricos não precisam de status social para ter legitimidade; o cancelamento para eles é infrutífero. Porém, mais à frente, Vianinha ataca novamente:

“Vocês sabem que perderam, não sabem? Quem de vocês não carrega no estômago um bolo, um opaco? Sabor de impotência...quem não se sente numa estreia metálica que vai vai vai...queria saber onde vocês ainda arranjam coragem de acordar, ouvir boletim meteorológico, usar brilhantina, cortar pelo do nariz, onde vocês arranjam coragem? Porque vocês tem coragem, eu juro que vocês  são uns machos pra aguentar, aguentar, vocês são uns machos, desistir tanto da vida e ainda viver os retalhos viver viver viver.” (p. 38)

O dramaturgo traz ao palco, para dizer de modo acadêmico, um corpo a corpo de uma classe social cujos sonhos foram solapados, de um lado, pela ditadura militar e, de outro, pela própria crise dos sonhos das gerações de 1968. Diante de uma década de 1970 que, embora fervilhante, se mostrava irrealizável para os movimentos de contracultura que começavam a ser absorvidos pelo capitalismo e pelos modos de subjetivação contemporâneos – e listo alguns deles: hippies, geração beat, tropicália, estudantes do maio de 1968, Primavera de Praga, Teatro Oficina, Cinema Novo –, experienciamos uma década de Vivacqua’s que se casaram, se tornaram pais de família, abandonaram os sonhos de revolução e se enfurnaram em agências de publicidade porque precisavam “ganhar a vida”.

Acontece que se o mundo fecha a porta para as revoluções, Vianinha resolve abrir uma janela. Ou melhor, duas. Em primeiro lugar, ele inventa um sujeito que se rasga, cheio de fúria, caos, medo, raiva, ódio e atravessa ele com toda a energia necessária para destruir mundos e muros, para enfrentar todas as instituições de peito aberto e gritar para as janelas silenciosas que o grito é preciso, nem que seja por um dia, nem que seja por essa janela, nem que seja durante apenas uma noite. Além disso, o autor abre a janela do teatro para que as fúrias não sejam jamais expurgadas, mas para que o páthos grego catártico, entre o horror e a piedade, ainda seja um sentimento possível, e ainda para que Bertolt Brecht não fique de fora, uma peça que não busca ser crítica, que não tem crítica, mas que incorpora, assume uma janela crítica diante do mundo.

A resistência é uma janela breve: uma janela que se abre e que se fecha. Para alguns, esse momento de abertura dura alguns instantes durante a adolescência. Para outros, em momentos fugazes, diante de um cotidiano triste e brutal. De novo, a resistência não é uma prática, um processo, um exercício, mas uma janela que se abre até que o mundo te engula. Até que a família te vença. Até que uma droga te consuma. Até que o medo de morrer supere a vontade de viver. Até que venha um até. Os revolucionários são breves, ficam pouco tempo, ou morrem cedo ou desistem tristes.

Podemos por um lado supor que Vianinha escreveu um texto trágico e é isso que você deve estar pensando ao ter lido o parágrafo anterior. Mas é aí que você se engana: Vianinha, ainda que diante de um buraco em que tudo é beira, escreve sobre a esperança. Se a capacidade de resistir às forças do mundo é uma janela, ainda que ínfima, há ainda assim uma janela. E isso vale mais do que qualquer coisa. Viver é uma maratona em que todo mundo eventualmente perde, mas, enquanto corremos suas longas estradas, podemos abrir diversas janelas por aí. E três janelas abertas, lado a lado, já fazem um quintal.

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Luiz Antonio Ribeiro é doutor em Memória Social pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), na área de Memória e Linguagem/Literatura Brasileira, mestre em Memória Social (PPGMS-UNIRIO), na área de Poesia Brasileira, e formado em Artes Cênicas – Teoria do Teatro pela UNIRIO. É adepto da leitura, pesquisa, cinema, cerveja, Flamengo e ócio criativo. Em geral, se arrepende do que escreve.