O golpe de 1964 e a modernização conservadora imposta pela ditadura colocaram os intelectuais diante de um dilema: de um lado, a necessidade de se posicionar para garantir a própria subsistência, e de outro, a opção pelo isolamento em crise com uma indústria cultural em rápida expansão. Nesse contexto de desenvolvimento, as formas de atuação tornaram-se cada vez mais complexas. Durante muito tempo, prevaleceu uma visão simplista que via como cooptação a participação dos intelectuais nos meios de comunicação de massa, desconsiderando a complexidade de suas motivações e circunstâncias. Essa é a questão da central da peça teatral Allegro Desbundaccio (Se Martins Penna Fosse Vivo), o penúltimo texto de Oduvaldo Vianna Filho, escrito em 1973. Ela narra a história de um publicitário que abandona um emprego milionário e enfrenta novos problemas ao se apaixonar por Teresa, uma jovem que deseja casar-se com um homem rico que ganhe 20 milhões. O enredo, aparentemente simples, trata da decisão de um homem de rejeitar um padrão de vida sustentado por relações de trabalho exploratórias, especialmente na publicidade.
A peça expõe o conflito entre setores da classe média que buscam ingressar na sociedade de consumo — representados por Cremilda e Teresa — e aqueles que tentam se manter à margem desse sistema — representados por Buja e Ênia. No mesmo prédio onde Buja mora, também vive Protético. De maneira geral, a vida para Protético se caracteriza pela improvisação diante das contingências da subsistência, seja para prover os gastos do cotidiano ou para lidar com imprevistos, como as dívidas geradas por fraudes de seus sócios ou o abandono de seu companheiro. Embora à primeira vista a atitude de Protético possa parecer trivial, ela revela aspectos fundamentais de sua personagem. Vianinha, através de Protético, aborda o mundo do trabalho. A percepção de Protético de que está à margem se deve à sua condição de trabalho — apenas ele e De Marco trabalham — e à sua homossexualidade.
“E o publicitário tem a seu lado um amigo que é homossexual, com larga experiência de marginalização e que talvez seja o mais maduro deles todos em enfrentar a vida, em dar a César o que é de César, em suportar a realidade e ao mesmo tempo viver sua vida, criar seus valores paralelamente aos valores que a realidade impõe”. VIANNA FILHO, Oduvaldo. Oduvaldo Vianna Filho, Allegro Desbum... JC Segundo Caderno, domingo, 29 de Julho de 1973. Depoimento dado a Marcílio Eiras Moraes.
Essa experiência de marginalização orienta suas ações de maneira muito diferente das de Teresa e Cremilda. Para Protético, a marginalização exige diferenciação e enfrentamento, enquanto para Teresa e Cremilda, basta a inserção nos meios de consumo. Allegro Desbundaccio explora uma estrutura de sentimento da intimidade na vida política. O homossexual não é um desbundado, mas um trabalhador. A peça oferece uma reflexão profunda sobre as deformações causadas pelo capitalismo e suas engrenagens, revelando a acuidade do dramaturgo na percepção da realidade sócio-histórica. Apesar de observar e aprofundar sua reflexão sobre esses aspectos, Vianinha não abandona suas convicções de uma proposta coletivista de transformação da realidade. Em “Allegro”, há mais uma ideia de resistência de Protético em continuar atuando na realidade em que vive do que um direcionamento para mudar essa realidade. A peça expõe os limites da década de 1970 através de uma rede de complexidades: o publicitário isolado, os que são deformados pelo sistema e optam por permanecer assim (Teresa, Cremilda, De Marco e Ênia) e o enfrentamento a partir do cotidiano (Protético).
Vianinha em Allegro Desbum delineia o perfil de um intelectual marcado por uma conjuntura complexa que o torna suscetível a posições ambíguas. Buja, o personagem principal enfrenta um problema realmente sério, que aflige o intelectual da classe média brasileira. A preocupação com a inocuidade de sua ação no contexto social é muito importante para o personagem, que é a espinha dorsal da peça. Ele apresenta uma variedade de motivações e conscientizações, uma variedade de emulações e necessidades, podendo parecer incoerente e cheio de contradições. O embate individual de Buja contra o sistema, representado pelos meios de comunicação, sugere um projeto fracassado e uma avaliação melancólica da situação. Buja é a alegoria da classe média que, para Vianinha, teria a possibilidade de dar/produzir o “salto”, mas não o faz.
Na década de 1970, a análise de Vianinha se associa aos impasses do intelectual mediante o mercado e às expectativas de quem almejava uma publicidade mais nacional, como Buja, mas que, parece, não tiveram ressonância, provocando o isolamento da personagem. Para Vianinha:
“Viver já não é uma coisa natural; hoje, é necessário um enorme desgaste de energia para realizar esta coisa aparentemente simples, pois a sociedade está tão de cabeça para baixo que, em certas situações, é preciso ser anormal para ser normal. Em ritmo de vaudeville, eu quis falar sobre a contradição de participar e negar este mundo feito para uma elite consumidora” (VIANNA FILHO, Oduvaldo. Entrevista. Vianinha, a difícil arte de viver. Da Surcusal do Rio. Folha de S. Paulo. Primeiro Caderno. 18 de agosto de 1973, p. 36).
Em Allegro Desbum, é possível rir do escracho de Buja ao colocar o traseiro na janela do apartamento como seu último gesto de contestação, ao mesmo tempo em que rimos com os reveses na trajetória de Protético. Todavia, há um afastamento entre sujeito e o objeto do qual se ri, onde as pequenas “tragédias” se revelam cômicas. Por outro lado, a comicidade de Buja gera um riso cinza e, por isso, os efeitos de comicidade de Buja e Protético são bastante distintos.
Retomar Martins Pena e a comédia de costumes como crítica social tem um significado especial nesse contexto, uma vez que são as elites os motivos de ridicularização da comédia de costumes. Ao invocar a herança dramatúrgica de Martins Pena, Vianinha reporta a um riso provocado pela crítica de costumes e valores, que em seu contexto toma a dimensão de crítica o isolamento da classe média. As convenções cômicas em Allegro Desbundaccio emitem uma noção do terreno no qual Vianinha esteve ocupado em toda sua trajetória: a discussão do vazio político que gera as opções individualizantes.
A inquietação em relação aos meios de comunicação é parte de uma tentativa de adaptação a uma nova situação no domínio da comunicação posta a partir do golpe de 1964. Nesse sentido, ao negar a publicidade de forma isolada, Buja constata tanto a ineficiência das opções individuais quanto a ineficácia de fugir das suas condições materiais, o que parece ser a ideia que Vianinha tenta traduzir. Por sua vez, Protético é um personagem que não foge à sua realidade, demonstrando que, se Buja ignora determinada realidade, ele a enfrenta — ambas as posições são decisivamente políticas.
Vianinha não apenas dialoga com o contexto, mas elabora formas de intervir no processo de modernização em curso no Brasil dos anos de 1970, revelando aspectos complexos dessa realidade. A abordagem cômica não se apresenta como incoerente à percepção trágica do país. Assim, não serão incomuns, em sua obra, narrativas de trajetórias trágicas sob a perspectiva da comédia. A obra de Vianinha representa um momento de desarticulação do binarismo entre o sério e o cômico. O riso serve como uma espécie de negação dessas trajetórias trágicas. Do ponto de vista estético, o riso é a forma negativizada do conteúdo trágico ao qual Vianinha se reporta através de seus personagens.
Pela negatividade da forma, é possível vislumbrar a maneira pela qual podemos superar essas tragédias. Se no conteúdo as situações são trágicas, o riso as nega ou pelo menos as ameniza, e, a partir disso, germina como algo transformador em sua própria expressão. Daí os termos para os quais ele identifica a principal tarefa do artista: a superação da tragédia. É somente a partir dessas pistas que podemos ler a obra de Vianinha sem cair no reducionismo da dicotomização de forma e conteúdo.
Nesse contexto, Vianinha persiste em sua busca por transcender o destino trágico, procurando romper com os caminhos trágicos por meio de mudanças sociais. O humor em suas obras revela algo significativo, pois o riso nelas expõe uma oposição política, indicando um projeto político subjacente. Além disso, Vianna Filho também expõe em sua obra a persistência da tragédia como uma escolha política.
“A opressão deforma o oprimido. A opressão tem razões profundas de ser. A injustiça talvez seja mais rica em razões do que em crimes. Ela tem arsenais de livros, de fatos, que a justificam. Então, em determinado momento, eu comecei a me preocupar muito mais com a existência do ser humano nesse redemoinho e a tentar mostrar esse processo de deformação. É você se solidarizar com o oprimido mas ao mesmo tempo reconhecer, exatamente, porque ele é oprimido, todas as deformações que sofreu” VIANNA FILHO, Oduvaldo. Oduvaldo Vianna – Allegro Desbum. Jornal do Comércio. Segundo Caderno. 29 de julho de 1973. Depoimento a Marcílio Eiras Moraes.
Em outros termos, o projeto político do qual faz parte não basta para o dramaturgo, por isso a constante preocupação com o público, sobretudo o popular. Para manutenção de um tipo de relação com a realidade, o humor de Vianinha elaborou o seu próprio avesso, apresentando-se como instrumento transformador, ao mesmo tempo em que apresenta seu contrário, situando o leitor/espectador na sustentação de suas opções, desvendando a responsabilidade pela infelicidade da personagem.
Em Vianna Filho, o cômico se transforma em uma nova forma revolucionária, pois nega a tragédia das trajetórias. O riso serve, assim, como uma superação das trajetórias trágicas. No entanto, Vianinha vai além ao mostrar que as pessoas persistem nesse caminho trágico e, portanto, ele não é superado. A discussão central é a relação entre a tragédia da vida e sua superação, que só se torna possível quando o leitor/espectador reflete sobre a ação lida ou vista. Se por um lado há a experiência trágica como conteúdo (narrativa) na vivência de suas personagens, por outro, ele utiliza a forma da comédia como uma maneira de suplantar a tragédia da existência. No entanto, as personagens não conseguem superar o sentido trágico de suas vidas, perpetuando a tensão entre forma e conteúdo.
No contexto de sua obra, podemos perceber que a comicidade, não apenas como tema, revela a maneira como Vianinha vê a realidade ao seu redor, especialmente a partir das escolhas pela revista e pela comédia de costumes no pós-1964. O conteúdo torna-se forma, e nessas peças, encontra-se a maneira como Vianinha observa o período da ditadura militar. Diante da perplexidade gerada pelos acontecimentos, ele retorna à revista e ao teatro de costumes, que, por não seguirem uma lógica clássica e linear, expressam os fatos caóticos de seu tempo. Analisar a dramaturgia de Vianinha nas condições históricas em que se formam e a que dão forma revela que sua opção pelo humor evidencia, por meio da linguagem, a apreensão da realidade. Talvez essa estratégia – em utilizar o humor – seja uma forma de abordar assuntos complexos de maneira um pouco menos dolorosa.
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Thaís Leão Vieira professora do curso de Licenciatura em História da Universidade Federal de Mato Grosso e do Programa de Pós-Graduação em História da UFMT. Coordenadora do Grupo de Estudos e Pesquisa em História, Linguagens e Cultura (Gepehlc/CNPq). Integra o grupo de Pesquisa Humor e História da USP, onde realizou estágio pós-doutoral entre 2019 e 2020. Membro da International Society for Luso-Hispanic Humor Studies (ISLHHS) e da Rede Internacional de Pesquisa em História e Culturas no Mundo Contemporâneo. Autora de "Allegro ma non troppo: ambiguidades do riso na dramaturgia de Oduvaldo Vianna Filho".