Acabamos de ouvir a impressionante abertura do primeiro ato da peça Uma Casa de Bonecas (em alemão, leva o título Nora ou Uma Casa de Bonecas), de Henrik Ibsen, bem como o final da peça, em que Nora dá adeus à sua família.[i] É uma peça que até hoje continua intrigando não só dramaturgos e dramaturgas do mundo todo, mas que também continua cativando profissionais de teatro e um grande público internacional. E essa despedida de Nora é muito mais do que uma cena com grande poder simbólico e repercussão até hoje; um pouco adiante contarei mais sobre isso. Vamos primeiro falar um pouco do autor Henrik Ibsen.
Ibsen nasceu em 20 de março de 1828 em Skien, sudoeste de Oslo. Seu pai, Knud Ibsen, era um comerciante de sucesso de madeira, e sua posição econômica lhe garantiu uma posição bem importante entre os nobres da pequena cidade portuária, estrategicamente importante e rica, de cerca de 3 mil habitantes. Sua mãe, Marichen Ibsen, criou os cinco filhos e cumpriu a imagem então clássica de uma dona de casa e mãe que, no entanto, se distanciou de seu marido na velhice e se voltou integralmente para a religião. Em certo momento, quando Henrik Ibsen tinha 7 anos de idade, a família passou a ter grandes dificuldades econômicas e foi forçada a se mudar para o interior. Esta ruptura na biografia de Ibsen, que podemos chamar de “perda de classe”, se reflete em toda sua obra que é, em grande medida, autobiográfica. Henrik era uma criança introvertida que entrou em contato com o teatro ainda jovem e que ficou imediatamente fascinado por este mundo e sua liberdade inerente em termos de performance e conteúdo. Ficou fascinado pelas apresentações de peças francesas que continham certa crítica social, como as de Eugène Scribe, e pelas peças populares dos poetas noruegueses Gottlieb Oehlenschläger e Johan Ludvig Heiberg, que se inspiraram nos motivos e temas da antiguidade nórdica.
Após terminar a escola, Henrik voltou para Skien e depois para Grimstad, onde fez uma formação técnica como farmacêutico. Foram seis anos de vida em circunstância bem precárias, mas ele terminou o período de aprendiz. Além disso, se tornou pai de um filho “ilegítimo”, Hans Jacob Henriksen, com uma empregada doméstica. Pagou pensão, mas não teve muito contato com os dois. O que Ibsen queria foi sair das condições apertadas e ele teve sorte, pois em 1847 um farmacêutico rico comprou a farmácia em que trabalhava e, assim, finalmente conseguiu seu próprio quarto e começou a se dedicar intensamente à leitura, aos estudos para seu exame de conclusão de curso e a escrever. Mesmo assim, não conseguiu se formar na escola e se matricular na universidade. Mas, no ano da revolução de 1848, que tinha afetada toda a Europa, o então jovem de 21 anos já estava escrevendo sua primeira peça Catilina, sobre a qual relatou anos depois: “O tempo estava cheio de Tempestade e Ímpeto [Sturm und Drang]. A Revolução de fevereiro, as revoltas na Hungria e em outros lugares, a Guerra de Schleswig – tudo isso teve um efeito poderoso e benéfico para o meu desenvolvimento. Catilina foi escrita em uma pequena cidadezinha burguesa e conservadora onde não tive a oportunidade de dar vazão ao que estava fermentando dentro de mim”.
Ele era apaixonado pelo movimento nacionalista escandinavo, entrou para o movimento dos trabalhadores, escreveu artigos políticos e foi nomeado poeta de teatro e dramaturgista em Bergen, a segunda maior cidade da Noruega. Em 1852, como missão de trabalho, fez uma grande turnê teatral de mais de dois meses para Copenhague e Dresden e descobriu a publicação O drama moderno, de Hermann Hettner, que o influenciou muito e lhe convenceu a manter seu estilo de escrita e sua abordagem realista nos dramas, apesar de ainda não ter tido sucesso. Seus anos de aprendizagem no teatro em Bergen foram difíceis, sobretudo porque ainda não havia conseguido entrar na elite literária da Noruega. Em 1857, assumiu o teatro em Christiania, um distrito da capital Oslo, e no ano seguinte casou-se com Suzannah Thoresen, com quem teve outro filho, chamado Sigurd.
Como diretor artístico do teatro, teve que incluir na programação muitas peças que não corresponderam às suas exigências estéticas, apenas para garantir o sucesso de público e a bilheteria necessária, mas renunciando a sua própria satisfação. Sua Comédia do amor, que o próprio Ibsen escreveu pensando apenas na diversão do público, mas mantendo certa qualidade estética, foi entendida pela sociedade norueguesa e pela mídia como um ataque ao casamento e, portanto, alvo de críticas desfavoráveis. Em 1862, o teatro declarou falência.
Ibsen se identificou cada vez menos com sua pátria e a situação econômica da jovem família era catastrófica. Mesmo a relação com seu rival e colega Björnsterne Björnson, que era cinco anos mais novo e de quem recebeu bastante apoio, não conseguiu reverter essa situação. Ibsen não aceitou a posição da Noruega na disputa pela unificação da Escandinávia, chamando-a de covarde, porque a Noruega não apoiou ativamente a Dinamarca na Guerra Alemanha-Dinamarca. Ele deixa a Noruega em 1864 e passa os próximos 27 anos no exterior.
Via Copenhague, a família chega a Lübeck, Berlim e, na Itália, chega finalmente a Roma, onde viviam muitos compatriotas escandinavos. Ibsen tem uma fase muito criativa, escreve a peça Brand, na qual retrata um idealista radical que fracassa por sua própria incapacidade e que, definitivamente, possui traços autobiográficos. Em Ischia e Sorrento, em 1867, escreve Peer Gynt um poema dramático que quebra todas as regras, quase como um acerto de contas com a Noruega, para demonstrar a falta de vontade de seus compatriotas, embora o poema seja também enriquecido com elementos fantásticos. Os contos populares fornecem o pano de fundo para a biografia da figura de Peer, que simboliza a sociedade com seus efeitos psicológicos, uma sociedade rural que está em fase de transformação para se tornar industrial. Peer, uma das figuras mais famosas do teatro europeu, charmosa e imprevisível, tira aos poucos suas diversas camadas, usando a imagem simbólica da cebola, mas revela não ter essência, não ter nenhum “Eu”. A recepção da peça foi ambivalente, mas a música do compositor Edvard Grieg lhe garantiu bastante êxito na Europa. Em 1868, Ibsen mudou-se para Berchtesgaden, na Alemanha, e depois para Dresden.
De 1869 a 1899, escreveu treze dramas de crítica social que lhe trouxeram fama mundial de forma duradoura. A máxima de Ibsen é que liberdade, igualdade e fraternidade precisam de um novo conteúdo e um novo propósito. O espírito humano precisa de uma revolução. Em uma carta ao famoso crítico literário dinamarquês Brandes, Ibsen escreve: “Em geral, nestes tempos, toda a história mundial me parece como um grande naufrágio; é necessário salvar a si mesmo”.
Em 1875, se mudou para Munique e dois anos depois, com Pilares da Sociedade, peça em que contrasta o ideal da verdade com a lógica da corrupção, finalmente chegou o grande sucesso nos teatros de língua alemã. Foi também o momento que entendemos como o nascimento de um naturalismo de forte teor de crítica social [em sua obra].
Depois que seu filho Sigurd se formou na escola secundária em 1878, o casal se mudou para Roma e Amalfi, onde Ibsen escreveu, em 1879, Uma Casa de Bonecas. Seguiram-se outros dramas inovadores, como Espectros, Um inimigo do povo, O pato selvagem e outros.
Com isso, o naturalismo, apesar de todos os escândalos que suas peças causam por retratar a realidade em toda sua brutalidade, não pode mais ser ignorado quando pensamos sobre o teatro europeu. Na literatura, no romance, este desenvolvimento já ocorreu um pouco antes. “Se privarmos o homem comum da mentira em que baseia sua vida, tiramos ao mesmo tempo sua felicidade” – muitos não querem ouvir isso.
Os contemporâneos alemães de Ibsen, como Gerhart Hauptmann e Arno Holz, o sueco August Strindberg, que até então só tinha atraído atenção com algumas poucas publicações e só teve sucesso mais tarde, tiveram que lutar com resistência semelhante.
Em 1891, Ibsen retornou a Christiania, onde ficou até sua morte. Quatro dramas (Solness, o construtor; O pequeno Eyolf; John Gabriel Borkman; Quando despertarmos de entre os mortos) compõem seu trabalho tardio. São retratos de artistas que chegam a conclusões complexas, marcadas por sentimentos de culpa que marcam uma vida toda, causados por crimes ou simples fracassos.
Em 1901, Ibsen sofre um derrame cerebral e morre em consequência disso, anos mais tarde, em 1906.
Ainda hoje, Ibsen é considerado no teatro europeu o símbolo máximo da modernidade emergente como um autor que defendeu de modo decidido a emancipação da mulher e que denunciou em termos explícitos as condições sociais. Além disso, já estão presentes em sua obra elementos do teatro do absurdo e expressivo que apontam a um futuro literário mais distante. Suas peças, de grande maestria dramatúrgica, oferecem papéis fantásticos para atores e atrizes, com personagens psicologicamente precisos e suas preocupações de crítica social, e continuam a exercer uma forte atração sobre o público até hoje. E, também, sobre dramaturgos e dramaturgas, que ainda desenvolvem novas interpretações para suas peças, mantendo-as vivas. Um exemplo disso é Elfriede Jelinek.
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Bettina Hering é curadora teatral do Festival de Salzburgo, um dos maiores eventos de teatro da Europa. Formada em Filosofia e Psicologia, passou por diversas instituições teatrais, entre elas a Deutsches Schauspielhaus, e pela companhia de teatro de Frankfurt Städtische Bühnen. Trabalhou ao lado de diretores renomados como Peter Palitzsch, Einar Schleef e Hans-Jürgen Syberberg. Desde 1991, mora em Viena, onde já trabalhou como encenadora e dramaturgista.
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[i] Para assistir à leitura do trecho de abertura da peça de Ibsen a qual a autora se refere, assista ao evento de lançamento da obra de Elfriede Jelinek, na íntegra, aqui.