A dramaturgia política, descendente longínqua do Teatro de Arena, foi a que mais e a que menos sofreu com a censura. Durante a repressão, retraiu-se para sobreviver, limitando-se a ocupar todo o pequeno espaço que lhe era consentido. Mas ao recuperar a palavra, com a abertura de 1980, ressurgiu quase intata em seus métodos e objetivos, apoiada que estava sobre a base sólida fornecida pelo marxismo. Se mesmo antes havia persistido em valorizar o verso e até a estrutura trágica grega, em peças como Gota d’Água, versão moderna de Medeia feita por Chico Buarque de Holanda e Paulo Pontes (1940-1976), mais motivos teria para não abandonar o único instrumental – a palavra – adequado à sua temática. Muitos escritores, assim que puderam ver os seus textos encenados, passaram a fazer o processo de 1964, revivendo no palco a odisseia dos exilados (Murro em Ponta de Faca, de Augusto Boal), encarando os dramas de consciência dos militantes de esquerda que se acovardaram (Sinal de Vida, de Lauro César Muniz), ou retomando a gravíssima questão da tortura oficializada ou semi-oficializada (A Patética, de João Ribeiro Chaves Neto, Milagre na Cela, de Jorge Andrade), já focalizada de modo transparentemente alegórico no período de maior arrocho censório (Ponto de Partida, de Gianfrancesco Guarnieri).
A peça mais inovadora desta safra dramatúrgica, contudo, refere-se às perplexidades do presente, não aos erros ou crimes do passado. Rasga coração não reabre o debate já um tanto exaurido dramaticamente entre esquerda e direita, liberdade e ditadura, direitos humanos e repressão policial. O conflito armado por Oduvaldo Vianna Filho em 1974, nas vésperas de morrer, aos trinta e oito anos, o que torna o seu drama ainda mais pungente, trava-se no bojo da própria esquerda, dentro da mesma família.
O tema do desentendimento entre pai e filho, lançado no pós-guerra por A Morte do Caixeiro-Viajante, de Arthur Miller, repercutiu fundo nos jovens dramaturgos brasileiros de então, devido a suas conotações ao mesmo tempo psicológicas e sociais. As primeiras peças encenadas profissionalmente tanto de Jorge Andrade (A Moratória) quanto de Gianfrancesco Guarnieri (Eles Não Usam Black-Tie) não tinham outro ponto de partida, sem por isso abdicar de sua originalidade e de suas raízes nacionais.
Vianinha retoma o mesmo esquema básico, de confronto entre duas pessoas e também entre dois períodos e duas mentalidades (três, de fato, em Rasga coração, já que o avô comparece em cena). A ação central opõe o pai, dedicado e modesto militante comunista, que leva uma vida anódina enquanto sonha com a grande explosão revolucionária futura, infelizmente sempre adiada, e o filho, produto da rebeldia de 1968, que deseja se modificar antes de modificar os outros, acreditando que as transformações advirão não de doutrinas abstratas mas da prática diária de novas formas de viver e conviver. A revolução terá de ser imediata, tocando a totalidade da personalidade humana, corpo e espírito, sexo e sentimento, pensamento e ação, sem que a sociedade se intrometa indevidamente na concepção de felicidade de cada um. É a ideia do Paradise Now, do paraíso instantâneo e agradavelmente anárquico prometido pelo espetáculo do Living Theatre, a preocupação com “o aqui e o agora”, tão característica das gerações seguintes a 1968.
Vianinha está do lado do pai, como Guarnieri já estivera em Eles não Usam Black-Tie, isto é, com o revolucionário de cunho marxista tradicional. É o que ele diz no Prefácio da peça, dirimindo possíveis dúvidas:
Em primeiro lugar, Rasga Coração é uma homenagem ao lutador anônimo político, aos campeões das lutas populares: preito de gratidão à Velha Guarda, à geração que me antecedeu, que foi a que politizou em profundidade a consciência do país. (...) Em segundo lugar, quis fazer uma peça que estudasse as diferenças que existem entre o novo e o revolucionário. O revolucionário nem sempre é novo absolutamente e o novo nem sempre é revolucionário.
Mas, enquanto dramaturgo, dá ao filho, na sequência das falas, razões suficientes para equilibrar os pratos da balança.
Rasga coração, por seu recorte de fundo ainda realista, por apoiar-se sobre mais de uma época (como A Moratória), prende-se, pela armação do enredo e pelo conteúdo ideológico, ao jato criador brotado em palcos do Brasil pouco antes e pouco depois de 1960. Encenada por José Renato (a exemplo mais uma vez de Eles Não Usam Black-Tie), não forçaríamos muito o sentido da história se a considerássemos a derradeira produção, embora póstuma, do Teatro de Arena. Os tempos é que são outros, possivelmente pós-marxistas, não pré-marxistas. A surpresa mais amarga do pai, aquela que verdadeiramente “rasga o coração” (título inspirado por canção de Catulo da Paixão Cearense), é descobrir que o filho condena por antiquada e inócua a sua velha e querida vanguarda política.
À liberalização da censura, forçoso é reconhecer, não correspondeu o esperado fluxo inventivo, talvez porque o teatro político também tenha os seus impasses interiores. Demasiado preso à racionalidade enquanto técnica, não pôde aproveitar o jorro do inconsciente que a vaga neo-surrealista lançou no palco, sob a forma de imagens oníricas, sensações, metáforas, associação livre de ideias. E como assunto depende um fluir histórico, de um desenrolar de fatos e conceitos, que não pertencem à esfera artística. Conforme for o destino da esquerda, assim será o seu.
Trecho extraído de: Décio de Almeida Prado. O teatro brasileiro moderno. 3 ed. São Paulo: Perspectiva, 2009, p. 126-129.