Um casal – Ele e Ela – vive uma crise e discute sua separação iminente. Ela quer deixar o casamento, alegando não o aguentar mais, ao passo que Ele resiste à ideia, menosprezando as motivações da companheira. O conflito matrimonial desvela camadas mais profundas do relacionamento conforme o espectador-leitor se depara com uma sequência de flashbacks, e o passado repleto de paixão aos poucos revela mudanças, traições, omissões, silêncios e distâncias acumulados ao longo dos anos. Entre idas e vindas, os afetos pessoais e os conflitos agressivos do casal se dissolvem e, em seu lugar, emerge o contexto político. Ela (mais tarde nomeada Sílvia) recorda a antiga militância de esquerda que Ele (Lúcio) aos poucos abandonou para tornar-se alguém oposto ao que outrora perseguia como ideal. Escrita em 1966, Mão na luva, primeira incursão de Oduvaldo Vianna Filho pelo terreno do lirismo, aborda os impasses da classe média pós-1964 com surpreendente complexidade formal e analítica.
Tais impasses éticos e políticos, no entanto, típicos do momento histórico em que a peça foi escrita, não se sobrepõem aos dilemas existenciais dos personagens. O texto traz no subtítulo “Introdução ao homem de duas faces” a dimensão do que é retratado: pessoas divididas entre suas possibilidades de vida, bem como entre as consequências de suas ações e posicionamentos. Todo esse conjunto confere ao texto caráter único na obra de Oduvaldo Vianna Filho.
Por que ler Mão na luva?
Vianna é constantemente recebido pela crítica como um autor “datado”, que se resume ao propósito político em seus textos. Porém, talvez Mão na luva seja o melhor exemplo de que o dramaturgo não politizou a arte; pelo contrário, “Vianna Filho estetizou a política”, como afirma a pesquisadora Rosangela Patriota (Universidade Mackenzie).
Na sala do apartamento de um casal de classe média carioca, identificados como intelectuais à esquerda, vemos retratadas questões que permanecem contemporâneas: o comportamento machista do homem em seu ambiente de trabalho e no contexto familiar, a violência doméstica, o jogo de interesses da vida pública e privada, a pequenez material que cerca o cotidiano, o papel da mulher na família, a disputa entre individual e coletivo, entre outras.
Mais um ponto interessante é a presença das Bachianas brasileiras, de Heitor Villa-Lobos. A partir das repetições de trechos do movimento número 5 da composição, Vianna problematiza o personagem intelectual, que deveria representar a ideia do autêntico brasileiro por conhecer as raízes da cultura nacional. Diante dos impasses da história pública e privada recente do país, Mão na luva mostra-se uma leitura contundente e necessária.
Curiosidades sobre a peça
Apesar de ter escrito Mão na luva em 1966, a peça só foi encenada em 1984, sob direção de Aderbal Freire Filho, quando também foi pela primeira vez publicada em livro.
A edição, organizada pelo crítico Yan Michalski, foi responsável pelo título definitivo da dramaturgia, uma vez que Vianna a nomeara Corpo a corpo, tal qual seu monólogo posterior, de 1970.
Além disso, em sua apresentação à edição, Maria Sílvia Betti, organizadora da Coleção Oduvaldo Vianna Filho, comenta a similaridade da peça com O desafio, filme de Paulo Saraceni que marcou o chamado Cinema Novo no país, e no qual Vianna Filho atuara.